segunda-feira, 21 de agosto de 2017

VERBO DESOPRIMIR


O que mais lamento nos pormenores da minha vida de que me esqueci é não haver feito um diário das minhas viagens. Nunca pensei tanto, nunca fui tanto eu, se assim ouso exprimir-me, como nas que fiz só e a pé.


Andar tem qualquer coisa que me anima e aviva as ideias: quase não posso pensar quando estou parado; preciso pôr o corpo em movimento para que o espírito o esteja também.


A vista dos campos, a sucessão dos aspectos agradáveis, o bom ar e o bom apetite, a boa saúde que adquiro andando, a liberdade das tascas, o afastamento de tudo quanto me faz sentir a minha dependência, de tudo o que me recorda a minha situação, tudo isto desoprime a minha alma, me dá uma maior audácia de pensar, me lança de certo modo na imensidão dos seres, para os combinar, escolher, fazê-los meus à minha vontade, sem constrangimento e sem temor.


Disponho da natureza inteira como seu senhor; o meu coração, errando de objecto em objecto, une-se, identifica-se com os que lhe agradam, rodeia-se de imagens encantadoras, embriaga-se com sentimentos deliciosos.


Se para os fixar me distraio a descrevê-los para mim mesmo, que vigor de pincelada, que frescura de colorido, que energia de expressão eu lhes não dou!


Dizem que tudo isso se encontra nas minhas obras, embora escritas no declinar dos anos. Oh! se tivessem visto as da minha primeira mocidade, as que fiz durante as minhas viagens, as que compus e nunca escrevi!...


Porque não as escrevo, dizeis vós? E por que hei-de escrevê-las, responderei eu? Por que hei-de roubar a mim próprio o encanto presente do prazer, para dizer aos outros que tive esses prazeres?


Que me importavam os leitores, um público, toda a terra, quando eu planava no céu? Aliás, levava eu acaso comigo papel e penas? Se houvesse pensado em tudo isso, nada me teria ocorrido.


Não previa que viria a ter ideias; estas vêm quando lhes apetece, não é quando me apetece a mim.


Ou não vêm, ou vêm em tropel, e o seu número e a sua força prostram-me.


Dez volumes por dia não chegariam. Onde arranjar tempo para os escrever?


Ao chegar, só pensava em jantar bem. Sentia que um novo paraíso me esperava à porta. Só pensava em ir em sua busca.


Jean-Jacques Rousseau, in Confissões, Volume I, trad. Fernando Lopes Graça, pref. Jorge de Sena, Relógio D'Água, 1988, pp. 166-167.

2 comentários:

Carlos Ramos disse...

Algo me fez lembrar o Walden do Thoreau. O contacto com a natureza é sempre inspirador, pena que a vida que nos impingiram e que nós por vontade própria ou tacitamente aceitámos, nos leve a um afastamento dessa inspiração. O que está na moda é aquele contacto grupal, festivaleiro que nada tem a ver com essa caminhada que deve ser sempre uma experiência individual e espiritual.

hmbf disse...

O Thoreau tinha as suas fontes. Caminhar em solidão é, de facto, muito compensador.