segunda-feira, 11 de setembro de 2017

LITERATURA E REVOLUÇÃO

Na biografia que dedicou a Léon Trotski (n. 1879 – m. 1940), o poeta brasileiro Paulo Leminski mostra-se especialmente atento ao livro Literatura e Revolução, referindo-se-lhe como o livro em que Trotski «formulou com maior clareza suas utopias mais vastas, a medida de amplidão do sonho revolucionário que o consumia e impulsionava». A história de Trotski é geralmente reduzida a três momentos essenciais: a adesão à facção bolchevique liderada por Lenin e, na sua sequência, o relevante papel desempenhado na chamada Revolução de Outubro; a perda de influência para Stalin após a morte de Lenin; a expulsão do partido em 1927, seguida de exílio e assassinato no México. Os pormenores ficam para depois. A história de Literatura e Revolução é o que aqui mais nos interessa. Leminski diz que o livro foi fundamentalmente escrito no Verão de 1922, ou seja, numa altura de conflito aceso com a ascensão estalinista. No início, deveria ser apenas um prefácio para a edição das suas Obras. Acabou por resultar na «mais lúcida meditação sobre arte e literatura deixada por um bolchevique» (idem). 
Um dos aspectos mais reveladores desta obra está sublinhado na nota do editor à edição portuguesa, com tradução de Serafim Ferreira, e edição da Editorial Fronteira (Dezembro de 1976): «Trotski rejeita qualquer forma de censura sobre os artistas e formula  mesmo o princípio da “liberdade total no domínio da arte”». De facto, isso mesmo podemos aferir quando, de um modo muito incisivo, o autor por diversas vezes afirma que «A arte e a ciência não procuram patrões; a arte, pela sua própria existência, sempre os recusou»; ou que «A arte, como a ciência, não exige ordens e, pela sua própria essência, nem sequer as tolera». Mas Trotski vai mais longe, ao defender «que não existe qualquer cultura proletária, nem nunca haverá. E, na realidade, não há razão para o lamentar: o proletariado tomou o poder precisamente para acabar aí para sempre com a cultura de classe e abrir caminho a uma cultura humana». Entusiasmado com a alfabetização das massas, excitado com a possibilidade de uma cultura artística aberta a todas as expressões e para todos, Trotski manifesta-se, porém, um crítico acérrimo de todas as formas de misticismo, pessimismo, cepticismo, de uma tendência a que chama “cosmismo”, variante do misticismo, não se furtando a apontar o dedo quando julgava necessário: «Sob a máscara de um cidadão civilizado, o nobre Versilov foi no seu tempo o parasita mais esclarecido da cultura estrangeira»; «Pelo seu parasitismo intelectual, pela sua bajulação, pela sua vilania, Rozanov apenas conseguiu levar a uma lógica os seus próprios traços espirituais comuns: a cobardia perante a vida e a cobardia perante a morte»; «O que é mais exacto e mais constante em Rozanov, de facto, é o seu rastejar de verme perante o poder. É um verme que escreve, um verme que se estende, desliza, encolhe, se contrai e se descontrai consoante as necessidades, mas desagrada sempre por ser um verme»; «Biély é um cadáver e não ressuscitará em nenhum Espírito, seja ele qual for»As preferências do autor vão para Blok, a sua tolerância vai para o futurismo de Maiakóvski e seus afilhados: «Biezmienski seria impossível sem Maiakovski e Biezmienski é realmente uma esperança»
Passados cem anos sobre a Revolução de Outubro, dentro em breve cem anos terão passado sobre esta obra de um dos rostos da Revolução. Que nos oferece ela no nosso tempo? Que nos poderá oferecer para o futuro? Desde logo a ideia de que a criação artística é inerente ao processo histórico, impulsiona a mudança e promove o olhar crítico, gera rupturas e acompanha a histórica na sua dinâmica imparável. A arte é uma engrenagem desse processo, não é um elemento decorativo dos paradigmas, não se esgota no elemento lúdico da sua acção nem pode reduzir-se ao entretenimento que a sociedade de consumo lhe exige. A criação artística, inalienável da vontade humana, promove a cultura mesmo quando lhe questiona os valores supostamente mais firmes.
«Temos necessidade de cultura no trabalho, de cultura na vida, de cultura nas relações quotidianas». Esta percepção do autor de Literatura e Revolução chega-nos hoje com a mesma vivacidade com que era proferida em 1923, tendo até talvez uma outra urgência, uma urgência assinalada por um dos maiores ataques à cultura que vem sendo perpetrado nos últimos anos pelas tecnologias da alienação, uma indústria de pós-verdade com resultados à vista, assente no delírio, na superficialidade, na excitação momentânea, na idiotização e na infantilização das massas, ou seja, na privação de cultura, na usurpação de valores absolutamente vitais para a democracia, como sejam a verdade e a liberdade. Não há, jamais haverá, liberdade num mundo de mentira e de ilusões. Poderá apenas haver uma domesticação asfixiante da criação, a qual terá também ao seu dispor os homens novos da parvalheira geral, todos eles estilo e opinião, todos eles magnificamente preparados para se entreterem com a discussão do sexo dos anjos enquanto, protegidos pela distracção geral, os anjinhos do Deus mercado surripiam bancos, paisagem, bens essenciais. «A arte pode ser o maior aliado da revolução desde que permaneça sempre fiel a si mesma». Ora aí está um belo ensinamento a reter no presente e para o futuro. 

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