quarta-feira, 4 de outubro de 2017

ÓDIO À POESIA

Comecemos por Platão. Parece-nos inevitável começar por Platão sempre que se fala de um hipotético ódio à poesia. Aguardamos sentados o ensaio dedicado ao tema que deixe o filósofo em paz. Ainda não foi desta. A história está mal contada. Platão não odiava os poetas, simplesmente os considerava má influência junto da juventude no contexto de uma cidade ideal. A cidade ideal é a cidade da verdade, a mesma que admite a mentira útil em determinadas circunstâncias. Essa é outra história. A expulsão dos poetas da República não tem na sua origem um ódio à poesia, que o próprio Platão praticava, mas sim um amor à verdade que Platão coloca num plano distinto do da poesia. Porquê? Porque a poesia oferece representações, ao passo que a filosofia almeja ideias. A ideia é a verdade, o poema poderá participar apenas da ideia enquanto sua representação, ou seja, é já uma deturpação da ideia. Tudo isto parece muito lógico no plano das ideias, num contexto, como agora se diz, académico. Na realidade, as ideias são meros postulados. A ideia de Verdade, a ideia de Bem, a ideia de Belo, a ideia de Absoluto, todas as ideias são postulados da mente. No mundo dos fenómenos, durante muito tempo os poetas foram vendendo o produto do seu trabalho enquanto aproximações à verdade. O poema colocar-nos-ia em contacto com a essência das coisas, o poema desvelaria, seria revelação, e o poeta uma espécie de demiurgo capaz de nos transportar através das palavras numa viagem até à Verdade, ao Belo, ao Bem, ao Absoluto. Nada disto faz hoje sentido, como sabemos. A poesia, pela mão de quem a cultiva, foi assumindo-se enquanto arte literária, uma forma de expressão mais ou menos subjectiva, mais ou menos universal, mais ou menos capaz de comunicar. Não sendo essa a sua função, pois para comunicar os homens servem-se de linguagens mais simples, mais úteis, mais práticas, a poesia assumiu-se como forma de expressão de um eu objectivo ou de um todo subjectivado pelos filtros de quem o observa. 
Partir de um princípio de ódio à poesia, como faz Ben Lerner (n. 1979), parece-nos manifestamente exagerado. Teremos, porventura, em repartições desconexas pela geografia onde o poema se manifeste, teremos, dizia, mera indiferença, algum desprezo, porventura desinteresse e ridicularização, mas temos também o culto de certos nichos capazes de regarem a poesia com festivais, soirées, edições a granel, numa proliferação de projectos editoriais, sítios on-line, festas, feiras, sessões, intensas querelas e nervos à flor da pele, que colocam a poesia ao nível da doçaria conventual. Para não referir as manifestações multidisciplinares em que ela aparece confundida, misturada ou de mão dada com a música, com a pintura, com a dança, com a performance… Ódio à Poesia (Elsinore, Setembro de 2017), de Ben Lerner, serve-se de um título provocador para divagar sobre uma dúvida algo capciosa: ««Poesia»: que espécie de arte acomoda o desagrado do seu público e que espécie de artista se alinha em defesa de tal desagrado, até mesmo encorajando-o? Uma arte odiada de fora e de dentro. Que espécie de arte tem como condição da sua possibilidade um perfeito desprezo?» (p. 9) Mas que público? Que público o da poesia senão aquele que comparece na soirée, mantém viável a publicação adquirindo livros ainda que à margem do mercado dito oficial, se afirma pela margem enquanto honrosa excepção capaz, incrivelmente, de seduzir críticos e congéneres numa avidez de artigos dedicados ao tema que poucas outras artes almejam? 
O ódio à poesia, a aversão à poesia, são noções claramente exageradas. Não tanto quanto a morte da poesia, que Lerner aflora, no sentido de uma declaração de óbito a certa concepção clássica e universalista de poema. O alcance deste ensaio é outro: «O ódio à poesia é intrínseco à arte, porque é tarefa do poeta e do leitor de poesia usarem a temperatura desse ódio para dissiparem o real do virtual, como nevoeiro» (p. 47). Repare-se o quão poética é a própria linguagem do ensaísta, como se fosse impossível falar-se de poesia sem ceder à linguagem poética. Ben Lerner está claramente mais interessado na defesa de uma ideia de poesia, uma ideia que liberte o poema das amarras da representação e o aceite enquanto manifestação de uma linguagem plástica, mais ampla do que a linguagem comum, capaz de desbravar os caminhos da mente para experiências que não estejam delimitadas pela percepção dos fenómenos. O poema virtual, que ele contrapõe ao poema real, é o foco do seu esforço. 
««Poesia» é uma palavra para uma espécie de valia que nenhum poema em particular pode concretizar: a valia de pessoas, a valia da actividade humana além da divisória trabalho/lazer, uma valia aquém ou além do preço. Assim, odiar-se poemas pode ser tanto um modo de expressar negativamente a poesia como um ideal — um modo de expressar o nosso desejo de exercitar tais capacidades imaginativas, de reconstituir o mundo social — como uma raiva defensiva contra a mera sugestão de que outro mundo, outra medida de valor, é possível» (p. 65). Portanto, o ódio à poesia questionado neste livro resulta numa espécie de defesa da poesia contemporânea, ou, pelo menos, de certa poesia contemporânea, aquela que não usurpa à linguagem poética a sua capacidade de gerar novos mundos para lá daqueles em que a linguagem geralmente se materializa, mundos em que o tempo e a geografia não espartilham a linguagem poética enquanto potência imagética e imaginativa. 

5 comentários:

Jorge Muchagato disse...

Poderia dizer que gosto muito, mas não é suficiente: gosto e agradeço; fiquei a saber.

hmbf disse...

Obrigado Jorge. Saúde,

LMR disse...

Porque é que Platão não haveria de odiar poetas? Um deles, Meleto, foi o principal acusador de Sócrates no processo que lhe custou a vida. A lenda e a historiografia, para mais, concordam que Meleto foi o testa-de-ferro de interesses políticos movidos por Ânito, um nobre ateniense. O teu erro é estares a ver "poesia" pelo prisma de séculos de propaganda que culminaram com ela a transformar-se em "liberdade livre"; para ti o poeta é aquela figura excêntrica, frontal, rebelde, apolítica, independente, aquele ser regiano que vai sempre pelo outro caminho, o ermitão à Herberto Hélder que se desliga do mundo em nome de uma hiper-pureza, e todas esses lugares-comuns dos últimos 200 anos.

Platão, claro, sabia por experiência que o poeta é apenas um homem como qualquer outro, corrompível, pronto a vender-se por dinheiro e benefícios. E porque não? O poeta, em Atenas, are um assalariado, alguém a quem se pagava para compor versos para dadas ocasiões e datas: poemas para casamento; poemas para jogos e festivais; poemas para celebrar uma vitória, etc. Só a partir da era Romântica é que os poetas se começaramm a inebriar com o mito deles próprios enquanto seres malditos à margem da sociedade. Platão não estava a ser reaccionário ao imaginar uma cidade sem poetas; estava a ser radical e inovador.

Quanto a pôr a verdade acima da poesia, além de isso fazer todo o sentido porque a verdade é a virtude principal, Platão se calhar não punha a questão nesses termos. Convém notar que o terceiro acusador de Sócrates foi Lícon, sofista e orador. O fracasso de Sócrates em persuadir o júri através do seu discurso de defesa, pode ter mostrado a Platão a inutilidade da retórica. Se a retórica não ajudava um homem honesto a fazer os outros ver a verdade, então a retórica para nada servia. A poesia, sendo um tipo de ficção, por lhe faltar rigor analítico e apelar à emoção em vez de transmitir factos, para Platão se confundia com a retórica dos sofistas, então populares. Em As Leis, Platão bane a oratória da sua cidade ideal: não haverá discursos judiciais, a justiça não se fará persuadindo multidões através de dotes retóricos, que era a prática comum em Atenas. Para Platão, isso não conduzia à verdade, como o destino de Sócrates lho comprovou. Em vez de discursos, ele preferia leis escritas que regulassem a condução da justiça. Depois de ter lido o livro de Laurent Pernot, Rhetoric in Antiquity, comecei a pensar se Platão não trataria a poesia e oratória como uma arte única, inerentemente defeituosa por não se dirigir ao intelecto dos homens. As Leis foi escrito depois de A República. As pessoas tendem a esquecer-se que neste diálogo Platão aceitou de novo os poetas na cidade ideal, desde que restringidos a certos papéis sociais.

A relação de Platão com a poesia é muito complexa e evoluiu ao longo da sua vida; o problema é que as pessoas só leram A República. Há óptimos ensaios na internet que ajudam quem quiser a superar a imagem antiquada de um lunático a querer banir poetas da cidade ideal.

hmbf disse...

Obrigado pelo comentário, com o qual concordo na generalidade. Espero até que isso tenha ficado claro na introdução que fiz à leitura do livro de Lerner. Só não percebo como é que se chega a esta conclusão:

«O teu erro é estares a ver "poesia" pelo prisma de séculos de propaganda que culminaram com ela a transformar-se em "liberdade livre"; para ti o poeta é aquela figura excêntrica, frontal, rebelde, apolítica, independente, aquele ser regiano que vai sempre pelo outro caminho, o ermitão à Herberto Hélder que se desliga do mundo em nome de uma hiper-pureza, e todas esses lugares-comuns dos últimos 200 anos.»

Não o percebo, ainda para mais, por ser uma leitura exactamente oposta a tudo o que tenho escrito e até publicado sobre o assunto.

Saúde,

LMR disse...

Ah, bem, isso é o meu exagero do costume. Estava mais a dirigir-me ao habitual leitor com quem já discuti Platão e os poetas; o habitual leitor que trata o "poeta" como um conceito inconsútil e imutável desde o princípio do tempo até hoje. Já lhes perdi a conta, por isso quando leio Platão e poetas na mesma frase entro em piloto automático.