A moda dos calendários nus contrasta com a atitude
hipócrita das pessoas sensíveis. As pessoas sensíveis, já dizia Sophia,
apreciam canja de galinha desde que não trucidem a galinha à sua frente. Também gostam muito de certa indumentária, que compram e
vestem e calçam, embora se exibam revoltadas com as condições de trabalho de
quem confecciona trapos tais. Degustam o brioche da Padaria Portuguesa,
conquanto não sejam lembrados da tacanhez laboral oferecida aos simpáticos trabalhadores
da Padaria. O mundo pode estar em ruínas, desde que eles não vejam. Para as
pessoas sensíveis, o mundo que desabe desde que não desabe em cima delas. As pessoas sensíveis são como os três macacos sábios de um mal interpretado provérbio japonês: não ouvir, não ver, não dizer. E o mal pode ir acontecendo.
Há nisto um misto de hipocrisia e de extremo egoísmo,
motores afinados das sociedades de consumo em que vivemos. Já a moda dos
calendários de nus é diferente. Não havendo por detrás deles uma qualquer
motivação egoísta, antes pelo contrário, os ditos calendários solidários têm na nossa sociedade um efeito similar ao dos beijinhos e abraços de Marcelo. Fez-se um,
achou-se graça. Agora são às toneladas e não têm graça nenhuma. Estudantes de
veterinária despem-se para ajudar animais vadios, bombeiras despem-se para
ajudar vítimas de incêndios, mães despem-se para ajudar escola… Enfim, qualquer
dia despimo-nos todos para garantir educação aos filhos dos funcionários da
Padaria Portuguesa.
E quem diz Padaria Portuguesa pode dizer um sem fim de
empresas que fazem uso das mesmas práticas: pagar pelo mínimo exigindo o máximo,
sem qualquer tipo de preocupação que não seja garantir o bem-estar das
administrações. Por mim falo, que tenho o vencimento congelado há seis anos.
Já não falta muito para que um colega que entre para a empresa como estagiário,
a ganhar o salário mínimo, tenha o mesmo vencimento base que eu, com 9 anos de
serviço ininterruptos, sem uma falta nem um dia de baixa, responsabilidades quintuplicadas.
São pormenores que não interessam, desde que continuemos a não ver ou a mostrar
tudo. Isto é, a varrer para debaixo do tapete ou a despirmo-nos de preconceitos
para calendários solidários.
Enfim, que relevância podem ter estas coisas quando comparadas com a última capa da revista Cristina? Concentremo-nos no que é verdadeiramente importante, a capa da revista Cristina e a Lili Caneças e um sem fim de parvoeiras e palermices que podem ocupar o nosso pensamento sensível enquanto os funcionários da Padaria Portuguesa mal têm tempo para pensar com tanto trabalho que os espera por um creme e um babygrow a bem das gerações futuras. E assim se constrói um futuro de esperança, risonho, dia a dia, hora a hora, ideal para orgias de empreendedorismo em Web Summits que nos fazem acreditar numa virtualidade que transcende a realidade da maioria - a que anda a servir cafés nos corredores do recinto enquanto sonha poder ter uma vida com, pelo menos, os mesmos direitos da robot Sophia. Que, ao que consta, não escreve poemas sobre pessoas sensíveis nem apareceu ainda na capa da revista Cristina.
Enfim, que relevância podem ter estas coisas quando comparadas com a última capa da revista Cristina? Concentremo-nos no que é verdadeiramente importante, a capa da revista Cristina e a Lili Caneças e um sem fim de parvoeiras e palermices que podem ocupar o nosso pensamento sensível enquanto os funcionários da Padaria Portuguesa mal têm tempo para pensar com tanto trabalho que os espera por um creme e um babygrow a bem das gerações futuras. E assim se constrói um futuro de esperança, risonho, dia a dia, hora a hora, ideal para orgias de empreendedorismo em Web Summits que nos fazem acreditar numa virtualidade que transcende a realidade da maioria - a que anda a servir cafés nos corredores do recinto enquanto sonha poder ter uma vida com, pelo menos, os mesmos direitos da robot Sophia. Que, ao que consta, não escreve poemas sobre pessoas sensíveis nem apareceu ainda na capa da revista Cristina.
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