domingo, 19 de novembro de 2017

TRÊS LIVROS, TRÊS AUTORES

Manuel Fernando Gonçalves (n. 1951), Rui Baião (n. 1953) e Paulo da Costa Domingos (n. 1953) são de uma mesma geração, a última que experimentou o ambiente social da ditadura em pleno uso, por assim dizer, das suas faculdades. Quando se deu a chamada Revolução dos Cravos, teriam aproximadamente vinte anos. Eram jovens num país de poetas entalado entre a herança libertária dos surrealistas e o neo-realismo, mais ou menos de cartilha, em voga nos salões da cultura aparentemente revolucionária. Conquanto tenham alicerçado a sua arte ainda na década de 1970 — Paulo da Costa Domingos, por exemplo, começou a publicar em 1972 —, foi na década seguinte que as suas propostas poéticas melhor se afirmaram. Nomeadamente, contra os salões (fossem eles putativamente revolucionários ou académicos, o que ia dar ao mesmo). Não ficará mal falar de contracultura, se falarmos de uma arte alternativa ao cânone vigente com um forte sentido de experimentação no domínio da contestação social. Apraz-nos constatar que passados quarenta e qualquer coisa anos sobre as primeiras publicações, estes poetas mantenham vivo o impulso criativo que nos três casos, manifestando expressões distintas, se liga por uma concepção da poesia que não abdica do mundo enquanto matéria de reflexão.
Barbearia Tiqqun (Frenesi, Setembro de 2017) é, por si só, um título que nos coloca alerta. Tiqqun é o nome de uma publicação surgida após os atentados de 11 de Setembro de 2001, inspirada na acção anarquista e na filosofia situacionista, que gerou alguma polémica depois de um dos seus membros, o activista político Julien Coupat, ter sido preso sob acusação de sabotagem e de terrorismo. A pergunta impõe-se: que cortes serão levados a cabo nesta barbearia? O intróito entre parêntesis adverte-nos para um Nada absoluto que percorrerá os versos subsequentes. O niilismo, como sabemos, é a derradeira negação de uma possibilidade de sentido para o mundo. Ele começa por negar as sistematizações, não lhe sendo possível, porém, negar a morte enquanto componente determinante da realidade. O niilismo advém de uma noção de crise ou de naufrágio fundada no sentimento de perda, à qual juntamos um inevitável processo de saturação histórica fundamentado na recusa de qualquer tipo de fé que confira sentido ao Mundo e à existência. No limite, como diriam alguns existencialistas, estamos condenados a viver a morte. O niilismo na poesia de Rui Baião exprime-se através de uma linguagem derisória que tem por objecto a actualidade mundana, detectável, por exemplo, num título como “Quod non est in tv non est in mundo…” A opção pela língua morta confere ao poema um princípio irónico, que o verso inicial prossegue sob a forma de axioma: «Morro, morro a rir» (p. 14).
Mas mais do que irónica, esta poesia é sarcástica — no sentido em que expõe com extrema crueldade os podres do mundo. «Por ond’anda o teu silêncio, se não junto / aos tectos do mundo?» (p. 5), questiona Rui Baião no poema inicial. O título “Cesura” é como uma espécie de ignição, o início de uma violenta operação exercida sobre o corpo e sobre a vida. Só não percebemos se esta vida ainda mexe ou se é já um cadáver no momento da autópsia. Alusões às ferramentas tecnológicas que hoje medeiam a existência dos povos, pelo menos tecem um diagnóstico nada favorável. O poema não resulta aqui como uma forma de disfarce, ele expõe o terror do mundo, as fracturas da humanidade, sem qualquer tipo de preocupação para com o belo ou para com as armadilhas de sedução poética de que geralmente os líricos se servem para cativar leitores. Num título como “Cybéria” é a saturação da humanidade que se coloca em plano, uma espécie de doença geral a que não fica alheia a actualidade pirómana nacional. Nem o amor escapa: «Quando é de amor / que se trata, ora aí está. A casa vazia, o remoinho / na empresa, os textos são como os mapas. Choram / os teus olhos, a vela enfunada, a menina dança? / Que descaramento, um predador perdedor» (p. 18).
Reencontramos em Romance Ardente (Frenesi, Setembro de 2017), de Manuel Fernando Gonçalves, vários dos ingredientes observados em Barbearia Tiqqun. Há uma interligação entre os dois livros obviada logo ao primeiro poema, assim como numa referência directa a Rui Baião surgida a páginas 29, com menções repetidas a alguém que se sente perdido, estende o mapa-múndi, ou mapa do mundo, ouve lala mary-am challa… Mas se em “Cesura” Rui Baião se questionava sobre o silêncio de algo ou de alguém junto aos tectos do mundo, em Manuel Fernando Gonçalves: «é aqui, / o tecto do mundo, não é preciso miragens nem boas razões, / mais próximo da realidade, audaz, mais amigo do vento» (p. 8). A epígrafe de Eliot não engana, Romance Ardente é um romance de guerra. No poema longo que oferece título ao livro detectamos uma compulsão narrativa muito característica desta poesia. Os poemas projectam um olhar descritivo da cidade moderna, arrastando na descrição as ruínas culturais de um povo entre muralhas. Os anjos convocados estão cheios de fármacos, carecem eles mesmos de protecção. É evidente o desamparo, sublinhado por uma ironia marcada pelo desalento da figura exemplar: um homem não chora. Vale a pena citar o poema na íntegra:

Um homem não chora, cartilha

Um homem como deve ser deve
estar atento aos sinais, produzir muito
pouco e evitar grandes explicações.
Tem de ser poeta: só nos versos
se emenda a mão, se é inteligente
e se tem razão. Um homem vibra
com certos sons, fremem-lhe os músculos,
percebe o arfar dos tecidos macios da roupa,
o seu desafio são os gestos elegantes
com que caminha, com que cumprimenta,
com que condescende não enunciar.
Nos desafios deve correr ao verso,
à sala das ferramentas, aos instrumentos
que o fazem forte, único e sagaz:
as melhores horas são as do desejo,
com certeza insiste em simular, em virar
o tecido ao decote, decerto as veias da testa
sobressaem quando cita uma erudição
qualquer. Tem de usar a memória,
que até pode ser de mulher, para responder,
sem sentimento, a esses disparates
do quotidiano moderno, a essa politiquice
da comunicação de massas, virtual e menor,
e pode, perfeitamente, aspirar da colher.

Num movimento espiralado e por vezes vertiginoso, as imagens repetem-se como ecos obsessivos de uma mesma percepção. Assim sucede com «a dança surda dos cães que esperam», no poema "A poesia" (p. 11) e no poema "Urze e fantasia" (p. 25). Este efeito de repetição sublinha igualmente a tal saturação que surge em plano de fundo. Como na música dos The Golden Palominos e dos Dead Can Dance, evocados a par de referências literárias diversas, o negrume tinge a poesia à medida que a espiral nos transporta na direcção de uma temática central: a morte. Não perdendo de vista o romance, introduzido por um soneto a páginas 33, é a morte nas suas várias configurações o elemento que se impõe no horizonte. Importa, no entanto, chamar a atenção para esta morte, de algum modo aclarada pelo manifesto que acompanha, ao jeito de introdução, o livro de Paulo da Costa Domingos: Sumo de Limão (Frenesi, Setembro de 2017). Os três livros, publicados em simultâneo pela editora Frenesi, nome ao qual se juntou na capa o prefixo ed. viúva, podem ser lidos à luz do manifesto intitulado "O Estatuto do Cadáver no Mundo Contemporâneo".
Concentremo-nos no verbo perder. O verbo perder pode indicar desorientação. Estar perdido é não reconhecer o caminho, é sentir-se baralhado, é naufragar. Mas perder pode também remeter para o abandono, quando perdemos alguma coisa ou alguém. Por fim, perder é sinónimo de derrota. Por mais que sejam as armas, como na epígrafe de Eliot, a derrota é certa. Ora, em todas estas possíveis conjugações do verbo perder a morte assume o mais preponderante dos papéis. A morte é o princípio do homem absurdo, a consciência da morte rouba ao homem o sentido da existência, fá-lo naufragar, sentir-se perdido ou estrangeiro, como na obra de Camus, entre os demais. É também a morte que nos introduz à perda, ao abandono. Lidar com a morte dos outros é lidar com a perda. No final, saímos todos derrotados. Predadores perdedores, como no poema supracitado, é esta a nossa condição de náufragos. O verso inicial do livro de Paulo da Costa Domingos não podia ser mais claro: «FOI ASSIM: está-se perdido estende-se o mapa-múndi / e sem perda de tempo começa-se logo a respirar» (p. 9).

A relação entre estes três livros não é, pois, meramente geracional. Os motivos repetem-se na distinção das vozes. O olhar lançado sobre a cidade é também o de um divórcio consumado entre o poeta e o seu campo de acção, devidamente ilustrado pela invocação de Herberto no poema final ou pela epígrafe de Richard Sennett no livro de Paulo da Costa Domingos: impõe-se o silêncio, porque o silêncio é a ausência de interacção social. Uma mesma ética subjaz, portanto, ao texto acolhido nestes três livros. Trata-se da ética de um desencontro do poeta com o seu tempo, perdidas todas e quaisquer ilusões sobre a excepcionalidade da poesia. «Ides ler um livro de versos banais», afirma-se no tal manifesto acerca do estatuto do cadáver no mundo contemporâneo.  Mas de banais estes versos têm apenas a força das circunstâncias, a transformação que torna irreconhecível o lugar onde perder é entre os dados adquiridos o mais adquirido de todos. 

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