Manuel Fernando Gonçalves (n. 1951), Rui Baião (n. 1953)
e Paulo da Costa Domingos (n. 1953) são de uma mesma geração, a última que
experimentou o ambiente social da ditadura em pleno uso, por assim dizer, das
suas faculdades. Quando se deu a chamada Revolução dos Cravos, teriam
aproximadamente vinte anos. Eram jovens num país de poetas entalado entre a
herança libertária dos surrealistas e o neo-realismo, mais ou menos de
cartilha, em voga nos salões da cultura aparentemente revolucionária. Conquanto
tenham alicerçado a sua arte ainda na década de 1970 — Paulo da Costa Domingos, por
exemplo, começou a publicar em 1972 —, foi na década seguinte que as suas
propostas poéticas melhor se afirmaram. Nomeadamente, contra os salões (fossem
eles putativamente revolucionários ou académicos, o que ia dar ao mesmo). Não
ficará mal falar de contracultura, se falarmos de uma arte alternativa ao
cânone vigente com um forte sentido de experimentação no domínio da contestação
social. Apraz-nos constatar que passados quarenta e qualquer coisa anos sobre
as primeiras publicações, estes poetas mantenham vivo o impulso criativo que
nos três casos, manifestando expressões distintas, se liga por uma concepção da
poesia que não abdica do mundo enquanto matéria de reflexão.
Barbearia Tiqqun (Frenesi, Setembro de 2017) é, por si
só, um título que nos coloca alerta. Tiqqun é o nome de uma publicação surgida
após os atentados de 11 de Setembro de 2001, inspirada na acção anarquista e na
filosofia situacionista, que gerou alguma polémica depois de um dos seus
membros, o activista político Julien Coupat, ter sido preso sob acusação de
sabotagem e de terrorismo. A pergunta impõe-se: que cortes serão levados a cabo
nesta barbearia? O intróito entre parêntesis adverte-nos para um Nada absoluto que
percorrerá os versos subsequentes. O niilismo, como sabemos, é a derradeira
negação de uma possibilidade de sentido para o mundo. Ele começa por negar as
sistematizações, não lhe sendo possível, porém, negar a morte enquanto componente
determinante da realidade. O niilismo advém de uma noção de crise ou de
naufrágio fundada no sentimento de perda, à qual juntamos um inevitável processo
de saturação histórica fundamentado na recusa de qualquer tipo de fé que
confira sentido ao Mundo e à existência. No limite, como diriam alguns
existencialistas, estamos condenados a viver a morte. O niilismo na poesia de
Rui Baião exprime-se através de uma linguagem derisória que tem por objecto a
actualidade mundana, detectável, por exemplo, num título como “Quod non est in
tv non est in mundo…” A opção pela língua morta confere ao poema um princípio
irónico, que o verso inicial prossegue sob a forma de axioma: «Morro, morro a
rir» (p. 14).
Mas mais do que irónica, esta poesia é sarcástica — no
sentido em que expõe com extrema crueldade os podres do mundo. «Por ond’anda o
teu silêncio, se não junto / aos tectos do mundo?» (p. 5), questiona Rui Baião no
poema inicial. O título “Cesura” é como uma espécie de ignição, o início de uma
violenta operação exercida sobre o corpo e sobre a vida. Só não percebemos se
esta vida ainda mexe ou se é já um cadáver no momento da autópsia. Alusões às
ferramentas tecnológicas que hoje medeiam a existência dos povos, pelo menos
tecem um diagnóstico nada favorável. O poema não resulta aqui como uma forma de disfarce, ele expõe o terror do
mundo, as fracturas da humanidade, sem qualquer tipo de preocupação para com o
belo ou para com as armadilhas de sedução poética de que geralmente os líricos
se servem para cativar leitores. Num título como “Cybéria” é a saturação da
humanidade que se coloca em plano, uma espécie de doença geral a que não fica
alheia a actualidade pirómana nacional. Nem o amor escapa: «Quando é de amor /
que se trata, ora aí está. A casa vazia, o remoinho / na empresa, os textos são
como os mapas. Choram / os teus olhos, a vela enfunada, a menina dança? / Que
descaramento, um predador perdedor» (p. 18).
Reencontramos em Romance Ardente (Frenesi, Setembro de
2017), de Manuel Fernando Gonçalves, vários dos ingredientes observados em
Barbearia Tiqqun. Há uma interligação entre os dois livros obviada logo ao primeiro
poema, assim como numa referência directa a Rui Baião surgida a páginas 29, com
menções repetidas a alguém que se sente perdido, estende o mapa-múndi, ou mapa
do mundo, ouve lala mary-am challa… Mas se em “Cesura” Rui Baião se questionava
sobre o silêncio de algo ou de alguém junto aos tectos do mundo, em Manuel
Fernando Gonçalves: «é aqui, / o tecto do mundo, não é preciso miragens nem
boas razões, / mais próximo da realidade, audaz, mais amigo do vento» (p. 8). A
epígrafe de Eliot não engana, Romance Ardente é um romance de guerra. No poema
longo que oferece título ao livro detectamos uma compulsão narrativa muito
característica desta poesia. Os poemas projectam um olhar descritivo da cidade
moderna, arrastando na descrição as ruínas culturais de um povo entre muralhas.
Os anjos convocados estão cheios de fármacos, carecem eles mesmos de protecção.
É evidente o desamparo, sublinhado por uma ironia marcada pelo desalento da
figura exemplar: um homem não chora. Vale a pena citar o poema na íntegra:
Um homem não chora, cartilha
Um homem como deve ser deve
estar atento aos sinais, produzir muito
pouco e evitar grandes explicações.
Tem de ser poeta: só nos versos
se emenda a mão, se é inteligente
e se tem razão. Um homem vibra
com certos sons, fremem-lhe os músculos,
percebe o arfar dos tecidos macios da roupa,
o seu desafio são os gestos elegantes
com que caminha, com que cumprimenta,
com que condescende não enunciar.
Nos desafios deve correr ao verso,
à sala das ferramentas, aos instrumentos
que o fazem forte, único e sagaz:
as melhores horas são as do desejo,
com certeza insiste em simular, em virar
o tecido ao decote, decerto as veias da testa
sobressaem quando cita uma erudição
qualquer. Tem de usar a memória,
que até pode ser de mulher, para responder,
sem sentimento, a esses disparates
do quotidiano moderno, a essa politiquice
da comunicação de massas, virtual e menor,
e pode, perfeitamente, aspirar da colher.
Num movimento espiralado e por vezes vertiginoso, as
imagens repetem-se como ecos obsessivos de uma mesma percepção. Assim sucede
com «a dança surda dos cães que esperam», no poema "A poesia" (p. 11) e no poema "Urze e fantasia" (p. 25). Este efeito de repetição sublinha igualmente a tal
saturação que surge em plano de fundo. Como na música dos The Golden
Palominos e dos Dead Can Dance, evocados a par de referências literárias
diversas, o negrume tinge a poesia à medida que a espiral nos transporta na direcção
de uma temática central: a morte. Não perdendo de vista o romance, introduzido
por um soneto a páginas 33, é a morte nas suas várias configurações o elemento
que se impõe no horizonte. Importa, no entanto, chamar a atenção para esta
morte, de algum modo aclarada pelo manifesto que acompanha, ao jeito de
introdução, o livro de Paulo da Costa Domingos: Sumo de Limão (Frenesi,
Setembro de 2017). Os três livros, publicados em simultâneo pela editora Frenesi,
nome ao qual se juntou na capa o prefixo ed. viúva, podem ser lidos à luz do
manifesto intitulado "O Estatuto do Cadáver no Mundo Contemporâneo".
Concentremo-nos no verbo perder. O verbo perder pode
indicar desorientação. Estar perdido é não reconhecer o caminho, é sentir-se
baralhado, é naufragar. Mas perder pode também remeter para o abandono, quando
perdemos alguma coisa ou alguém. Por fim, perder é sinónimo de derrota. Por
mais que sejam as armas, como na epígrafe de Eliot, a derrota é certa. Ora, em
todas estas possíveis conjugações do verbo perder a morte assume o mais
preponderante dos papéis. A morte é o princípio do homem absurdo, a consciência
da morte rouba ao homem o sentido da existência, fá-lo naufragar, sentir-se
perdido ou estrangeiro, como na obra de Camus, entre os demais. É também a
morte que nos introduz à perda, ao abandono. Lidar com a morte dos outros é
lidar com a perda. No final, saímos todos derrotados. Predadores perdedores,
como no poema supracitado, é esta a nossa condição de náufragos. O verso
inicial do livro de Paulo da Costa Domingos não podia ser mais claro: «FOI
ASSIM: está-se perdido estende-se o mapa-múndi / e sem perda de tempo começa-se
logo a respirar» (p. 9).
A relação entre estes três livros não é, pois, meramente
geracional. Os motivos repetem-se na distinção das vozes. O olhar lançado sobre
a cidade é também o de um divórcio consumado entre o poeta e o seu campo de
acção, devidamente ilustrado pela invocação de Herberto no poema final ou pela epígrafe
de Richard Sennett no livro de Paulo da Costa Domingos: impõe-se o silêncio,
porque o silêncio é a ausência de interacção social. Uma mesma ética subjaz,
portanto, ao texto acolhido nestes três livros. Trata-se da ética de um
desencontro do poeta com o seu tempo, perdidas todas e quaisquer ilusões sobre
a excepcionalidade da poesia. «Ides ler um livro de versos banais», afirma-se
no tal manifesto acerca do estatuto do cadáver no mundo contemporâneo. Mas de banais estes versos têm apenas a força
das circunstâncias, a transformação que torna irreconhecível o lugar onde
perder é entre os dados adquiridos o mais adquirido de todos.
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