quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

ANTOLOGIA DA POESIA ERÓTICA BRASILEIRA

Não vale a pena elaborar teses sobre o assunto, há muito estamos fartos de saber que uma antologia será sempre obra incompleta. Estão uns, não estão outros. Nesta, por razões que se explicam, não está Manuel Bandeira, e, por razões inexplicáveis, não se encontra Manoel de Barros. Sobre para o que serve, remeto o leitor para a mais radical das dúvidas: para que serve a nossa vida? Serve, em última análise, para andarmos por cá a passear orelhas. As antologias como que registam quem andou por cá, seria estúpido exigir-lhes mais do que darem conta dessa passagem segundo critério previamente definido. Outra questão é o princípio a partir do qual damos conta, ou seja, o critério. E nisso, há umas que importam e outras que não importam para nada.
Na Antologia da Poesia Erótica Brasileira organizada por Eliane Robert Morais, com edição portuguesa da Tinta-da-china (Novembro de 2017), o princípio foi o tema anunciado no título. Desde sempre o erotismo foi assunto de poetas, desde Safo na Grécia, desde o Cântico dos Cânticos no Médio Oriente, desde Vatsyayana na Índia, desde Ovídio, Marcial, Omar Khayyam… Para o caso em apreço, desde Gregório de Matos (1623-1696). Ouvimos falar dele, pela primeira vez, num voluminho da colecção Contramargem da &etc. Data de nascimento incerta — 1633? 1636? —, embora no índice do volume que agora nos prende se atribua ao “Boca do Inferno”, assim ficou para sempre conhecido, a data de 1623 como ano de nascimento. Não é relevante, conquanto saibamos ter sido lá pelo século XVII que o bardo deu à lira.
Queremos, pois, perceber como foi tratado o erotismo na poesia brasileira ao longo dos séculos. E esta antologia oferece-nos uma panorâmica generosa, diversificada e extremamente inteligente. Basta ler o posfácio da organizadora para o constatarmos. Entre Gregório de Matos, lá do século XVII, e Claudia Roquette-Pinto (1963), com muitos anónimos pelo meio, são diversas as vozes, percorrendo movimentos que vão dos parnasianos aos modernistas, destes aos concretistas, dos concretistas aos marginais, aos tropicalistas, à poesia popular, de cariz fescenino, e de cordel, sem esquecer movimentos e colectivos menos relevantes para a história da literatura, mas interessantes para uma sociologia literária, como a Sociedade Epicureia de Álvares de Azevedo (1831-1852) e de Bernardo Guimarães (1825-1884), autor de A escrava Isaura.
Como linhas de força da poesia erótica brasileira, Eliane Robert Moraes aponta a alusão escatológica enquanto forma de minar o sentimentalismo, de desconstruir o romantismo, de subverter o tom idealista da lírica amorosa tradicional. Poemas que descem à carne, pondo em xeque o amor enquanto emoção platonicamente idealizada, transgredindo o cânone moralizante e contrariando um lugar comum de poesia amorosa. Neste sentido, parece-me da mais alta relevância citar uma ideia explanada no posfácio: «antes de ser um modo de pensar o sexo, o erotismo literário é um modo de pensar a partir do sexo» (p. 292). O que certamente chocará certos leitores mais pudicos, conservadores ou convencionais, é precisamente esta linha transgressora do erotismo (seja ele brasileiro ou português), eticamente suportada pelos ensinamentos cínicos, pela “sabedoria do carpe diem”, pelo lado satânico do riso. Eis uma outra linha de força consagrada nesta antologia, a do riso, a da comicidade, a do exagero que, aliados à fantasia erótica, potenciam o gozo da vida e espantam a morte. Tudo pouco cristão, como se nota, mesmo quando eivado de certo misticismo (leiam-se Junqueira Freire ou Valdo Motta).
Tendo por referência a célebre Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, esta outra do erotismo brasileiro não esquece a dimensão satírica da poesia mais obscena ou pornográfica, da poesia iconoclasta que tantas vezes leva apenas e envergonhadamente o nome de erótica. Aqui, o beijo mistura-se com o peido naquilo que, enfim, podemos definir como matéria de corpo. São ambos pretexto para uma desconstrução da lírica amorosa e, por consequência, de uma imagem idealista do amor. O motivo alimentar, recorrente, é indicador desta carnavalização e carnalização do amor, contra o que mandam religiões, programas morais, sistemas axiológicos. Tome-se de exemplo um soneto do poeta negro Cruz e Souza (1861-1898), que ficou esquecido nas notas biográficas desta antologia, mas a quem Paulo Leminski, caso estejam interessados, dedicou uma belíssima biografia:

ENCARNAÇÃO

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos…

Sonhos, que vão, por trémulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos…

Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as visões do amor dormem geladas…

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!


Dito isto, resta concluir que a Antologia da Poesia Erótica Brasileira é um belíssimo documento. Poderá e deverá ser melhorado em edições futuras, mas coloca-nos em mãos uma perspectiva riquíssima dos diversos modos de tratar poeticamente o erotismo. Sendo o ponto de partida a literatura brasileira, é curioso notar as inevitáveis ligações a Portugal encontradas ao longo do volume. Gregório de Matos, o patrono, formou-se em direito na cidade de Coimbra. Tomás Antônio Gonzaga, nascido no Porto, formou-se igualmente em Direito na Universidade de Coimbra. Gonçalves Dias também estudou em Coimbra. Casimiro de Abreu iniciou actividade literária em Lisboa. Fernando Paixão nasceu em Beselga, freguesia do concelho de Penedono, Distrito de Viseu. Murilo Mendes faleceu em Lisboa. São apenas exemplos de uma ligação a Portugal que uma mesma língua proporciona. Palavra final para as vozes femininas antologiadas, que, dadas as circunstâncias históricas e o tema em causa, acabam por ter uma representação notável. São elas Alexandrina da Silva Couto dos Santos (1859-1934), Francisca Júlia da Silva (1871-1920), Gilka Machado (1893-1980), Hilda Hist (1930-2004), Maria Lúcia Dal Farra (1944), Ana Cristina Cesar (1952-1983), Angela Melim (1952), Josely Vianna Baptista (1957) e a supracitada Claudia Roquette-Pinto (1963).

1 comentário:

Anónimo disse...

Quem te atura vai pró céu ó Fialho!