Não vale a pena elaborar teses sobre o assunto, há muito
estamos fartos de saber que uma antologia será sempre obra incompleta. Estão
uns, não estão outros. Nesta, por razões que se explicam, não está Manuel
Bandeira, e, por razões inexplicáveis, não se encontra Manoel de Barros. Sobre
para o que serve, remeto o leitor para a mais radical das dúvidas: para que
serve a nossa vida? Serve, em última análise, para andarmos por cá a passear
orelhas. As antologias como que registam quem andou por cá, seria estúpido
exigir-lhes mais do que darem conta dessa passagem segundo critério previamente
definido. Outra questão é o princípio a partir do qual damos conta, ou seja, o
critério. E nisso, há umas que importam e outras que não importam para nada.
Na Antologia da Poesia Erótica Brasileira organizada por
Eliane Robert Morais, com edição portuguesa da Tinta-da-china (Novembro de
2017), o princípio foi o tema anunciado no título. Desde sempre o erotismo foi
assunto de poetas, desde Safo na Grécia, desde o Cântico dos Cânticos no Médio
Oriente, desde Vatsyayana na Índia, desde Ovídio, Marcial, Omar Khayyam… Para o
caso em apreço, desde Gregório de Matos (1623-1696). Ouvimos falar dele, pela
primeira vez, num voluminho da colecção Contramargem da &etc. Data de
nascimento incerta — 1633? 1636? —, embora no índice do volume que agora nos
prende se atribua ao “Boca do Inferno”, assim ficou para sempre conhecido, a
data de 1623 como ano de nascimento. Não é relevante, conquanto saibamos ter
sido lá pelo século XVII que o bardo deu à lira.
Queremos, pois, perceber como foi tratado o erotismo na poesia
brasileira ao longo dos séculos. E esta antologia oferece-nos uma panorâmica
generosa, diversificada e extremamente inteligente. Basta ler o posfácio da
organizadora para o constatarmos. Entre Gregório de Matos, lá do século XVII, e
Claudia Roquette-Pinto (1963), com muitos anónimos pelo meio, são diversas as
vozes, percorrendo movimentos que vão dos parnasianos aos modernistas, destes
aos concretistas, dos concretistas aos marginais, aos tropicalistas, à poesia popular, de cariz fescenino, e de cordel, sem
esquecer movimentos e colectivos menos relevantes para a história da
literatura, mas interessantes para uma sociologia literária, como a Sociedade
Epicureia de Álvares de Azevedo (1831-1852) e de Bernardo Guimarães (1825-1884),
autor de A escrava Isaura.
Como linhas de força da poesia erótica brasileira, Eliane Robert
Moraes aponta a alusão escatológica enquanto forma de minar o sentimentalismo, de desconstruir o romantismo, de subverter o tom idealista da lírica amorosa tradicional. Poemas que descem
à carne, pondo em xeque o amor enquanto emoção platonicamente idealizada,
transgredindo o cânone moralizante e contrariando um lugar comum de poesia amorosa.
Neste sentido, parece-me da mais alta relevância citar uma ideia explanada no
posfácio: «antes de ser um modo de pensar o sexo, o erotismo literário é um
modo de pensar a partir do sexo» (p. 292). O que certamente chocará certos
leitores mais pudicos, conservadores ou convencionais, é precisamente esta linha
transgressora do erotismo (seja ele brasileiro ou português), eticamente suportada
pelos ensinamentos cínicos, pela “sabedoria do carpe diem”, pelo lado satânico
do riso. Eis uma outra linha de força consagrada nesta antologia, a do riso, a
da comicidade, a do exagero que, aliados à fantasia erótica, potenciam o gozo
da vida e espantam a morte. Tudo pouco cristão, como se nota, mesmo
quando eivado de certo misticismo (leiam-se Junqueira Freire ou Valdo Motta).
Tendo por referência a célebre Antologia de Poesia Portuguesa
Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, esta outra do erotismo
brasileiro não esquece a dimensão satírica da poesia mais obscena ou pornográfica,
da poesia iconoclasta que tantas vezes leva apenas e envergonhadamente o nome
de erótica. Aqui, o beijo mistura-se com o peido naquilo que, enfim, podemos
definir como matéria de corpo. São ambos pretexto para uma desconstrução da
lírica amorosa e, por consequência, de uma imagem idealista do amor. O motivo
alimentar, recorrente, é indicador desta carnavalização e carnalização do amor,
contra o que mandam religiões, programas morais, sistemas axiológicos. Tome-se
de exemplo um soneto do poeta negro Cruz e Souza (1861-1898), que ficou
esquecido nas notas biográficas desta antologia, mas a quem Paulo Leminski,
caso estejam interessados, dedicou uma belíssima biografia:
ENCARNAÇÃO
Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos…
Sonhos, que vão, por trémulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos…
Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as visões do amor dormem geladas…
Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragrâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!
Dito isto, resta concluir que a Antologia da Poesia
Erótica Brasileira é um belíssimo documento. Poderá e deverá ser melhorado em
edições futuras, mas coloca-nos em mãos uma perspectiva riquíssima dos diversos
modos de tratar poeticamente o erotismo. Sendo o ponto de partida a literatura
brasileira, é curioso notar as inevitáveis ligações a Portugal encontradas
ao longo do volume. Gregório de Matos, o patrono, formou-se em direito na
cidade de Coimbra. Tomás Antônio Gonzaga, nascido no Porto, formou-se
igualmente em Direito na Universidade de Coimbra. Gonçalves Dias também estudou
em Coimbra. Casimiro de Abreu iniciou actividade literária em Lisboa. Fernando
Paixão nasceu em Beselga, freguesia do concelho de Penedono, Distrito de Viseu.
Murilo Mendes faleceu em Lisboa. São apenas exemplos de uma ligação a Portugal
que uma mesma língua proporciona. Palavra final para as vozes femininas
antologiadas, que, dadas as circunstâncias históricas e o tema em causa, acabam
por ter uma representação notável. São elas Alexandrina da Silva Couto dos
Santos (1859-1934), Francisca Júlia da Silva (1871-1920), Gilka Machado
(1893-1980), Hilda Hist (1930-2004), Maria Lúcia Dal Farra (1944), Ana Cristina
Cesar (1952-1983), Angela Melim (1952), Josely Vianna Baptista (1957) e a
supracitada Claudia
Roquette-Pinto (1963).
1 comentário:
Quem te atura vai pró céu ó Fialho!
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