Qualquer boa surpresa guardada para final de ano arrisca-se
a passar despercebida, arrastada pela voragem de lixo instalada nas livrarias durante
o período da quadra natalícia. É uma injustiça que não pretendemos para Leviatã ou O Melhor dos
Mundos seguido de Espelhos Negros (Abysmo, Outubro de 2017), de Arno Schmidt (n. 1914 – m. 1979), com
tradução aplicada de Mário Gomes. Acontecimento literário, desde logo, por nunca o
autor alemão ter sido traduzido para língua portuguesa. Ele próprio tradutor, arquitecto
de uma prosa altamente experimental, surge amiúde comparado aos irlandeses Laurence Sterne e James Joyce. A nível de experimentação,
poderíamos ainda referir o francês Georges Perec ou o Leminski de “Catatau”.
Não estamos a falar de influências literárias. Essas, o próprio
Arno Schmidt encarregou-se de sublinhar exaustivamente no corpo dos seus textos. Em Leviatã, por exemplo, «Kant limitou-se a demonstrar que as
provas da existência de um Deus «bom» eram piadas mal contadas» (p. 19). O
autor das três críticas surge ainda referido a par de Schopenhauer, Bernhard
Riemann, Goethe, Darwin, naquela que se apresenta como uma escola inspiradora
da heterodoxia abraçada por Schmidt.
Sublinhe-se, de igual modo, a irónica alusão a
Leibniz no subtítulo do livro de estreia. Leviatã ou O Melhor dos Mundos foi publicado em 1949, na
ressaca de uma devastadora guerra em que Schmidt serviu. O texto sugere
qualquer coisa de catártico no tom furioso e sarcástico das reflexões propostas.
Leviatã, que tanto pode ser aqui entendido como o Criador ou como a Natureza (vide
p. 39), gerou um monstro chamado humanidade. A ideia de vivermos no melhor dos
mundos possíveis não pode senão ser uma patranha desmentida quer pela razão, quer pela mera observação. Do leque germânico, Nietzsche é quem sai mais mal tratado. Acusado
de inspirar o nazismo, foi, e passo a citar, um simplório, o idólatra do poder,
patife de focinho loquaz… «Ele e Platão foram dois grandes parasitas (para além
de ignorantes: veja-se nas ciências da natureza)» (p. 25).
Destacado para a
Noruega em 1940, já depois de ter casado, Arno Schmidt acabou como prisioneiro
de guerra durante oito meses. Perdeu tudo durante esse período, instalando-se
posteriormente com a mulher em Cordingen. Aí iniciou a sua carreira literária
com Leviatã. A ideia de fuga, associada à de sobrevivência, marcam o texto.
Ainda num estilo não tão complexo como o de Espelhos Negros, o livro de estreia é uma
narrativa «pautada por uma acção com forte carga alegórica e laivos de estudo
social» (Mário Gomes, no prefácio). Algo semelhante pode ser dito de Espelhos Negros, prosa desenvolvida
já num estilo elíptico que se caracteriza pela fragmentação do discurso. Cada
fragmento como que corresponde a um parágrafo, desenvolvido a partir de uma
ideia ou tema colocados em itálico no início do texto.
Espelhos Negros data de
1951 e corresponde, em termos biográficos, a uma espécie de prenúncio do
isolamento a que Schmidt se dedicou, a partir de 1958, na aldeia de Bargfeld. A
narrativa inicia-se no dia 1/5/1960, formando uma espécie de diário com forte componente autobiográfica a que o autor não se furta. «No fim hei-de
ficar sozinho com o Leviatã (ou até transformar-me eu nele)», diz-se a páginas
50. Esta metamorfose surge de um voluntário isolamento no seio da Natureza, que Arno
Schmidt descreve em belíssimos fotogramas ao mesmo tempo que afirma a
humanidade como uma personificação do mal: «Isto é o mais bonito na vida:
profundidade nocturna e lua, orlas de florestas, águas resplandecentes e
silenciosas, ao longe, na modesta solidão de um prado — fiquei acocorado durante
algum tempo, ocioso, com a cabeça inclinada para a direita; de quando em quando
uma estrela lançava uma chispa muito para lá de Stellichte; por vezes uma
ventania desengonçada surpreendia-me e despenteava-me, como uma amante
adolescente e malcriada; mesmo quando tive de ir atrás de um arbusto, foi atrás
de mim» (p. 52).
Dividido em duas partes, Espelhos Negros narra no primeiro tempo a fixação de um homem no seio da natureza, a construção de um abrigo, os momentos de total isolamento, a busca de mantimentos, instantes de auto-reflexão, por vezes assaz autocríticos, o elogio do trabalho braçal e dos esforços físicos, com espaço, sempre e de forma contundente, para a desmistificação dos mitos alemães: «finalmente um livro: Rilke, Histórias do Bom Deus, vens mesmo a calhar; e arranquei logo as páginas necessárias àquela prosa de ourives: só o título já me revoltou: palavreado finório; este é mais um pneumatómaco: vai mas é prós guácharos!» (p. 63). Categorias como as de pessimismo e optimismo não são para aqui chamadas. Arno Schmidt manifesta uma profunda desconfiança da humanidade, mas não se pode dizer que seja um pessimista. A segunda parte de Espelhos Negros, pautada pelo encontro amoroso com «uma cigana daquelas de verdade», recoloca-o com extrema evidência num espaço de contradição que é o seu.
Dividido em duas partes, Espelhos Negros narra no primeiro tempo a fixação de um homem no seio da natureza, a construção de um abrigo, os momentos de total isolamento, a busca de mantimentos, instantes de auto-reflexão, por vezes assaz autocríticos, o elogio do trabalho braçal e dos esforços físicos, com espaço, sempre e de forma contundente, para a desmistificação dos mitos alemães: «finalmente um livro: Rilke, Histórias do Bom Deus, vens mesmo a calhar; e arranquei logo as páginas necessárias àquela prosa de ourives: só o título já me revoltou: palavreado finório; este é mais um pneumatómaco: vai mas é prós guácharos!» (p. 63). Categorias como as de pessimismo e optimismo não são para aqui chamadas. Arno Schmidt manifesta uma profunda desconfiança da humanidade, mas não se pode dizer que seja um pessimista. A segunda parte de Espelhos Negros, pautada pelo encontro amoroso com «uma cigana daquelas de verdade», recoloca-o com extrema evidência num espaço de contradição que é o seu.
Já antes, este literato que passou a vida a remexer no sem-sentido declarara:
«Ai do homem que não se tenha arrependido pelo menos 10 vezes na vida de não
ter escolhido o ofício de carpinteiro!» (p. 73). O que os dois textos reunidos
neste volume manifestam é um total desprezo pela maldade, a qual não pode senão
ser imputada à ignorância dos homens cuja vida se faz em função dos
interesses de grupo. Schmidt viu até onde o homem pode ir no ofício da maldade, não está minimamente interessado em desculpar-se ou em mergulhar num exercício de auto-negação. Porque espertos são os eremitas, depreendemos que a
burrice seja o social. Lisa, a cigana de verdade, personifica também ela a
beleza do anti-social ou, se preferirem, do solipsismo. Com ela, o protagonista de Espelhos Negros partilhará as
memórias. E nisto há também uma noção do que é esse impulso de escrever sem
qualquer perspectiva de chegar a uma massa de leitores, ou seja, a
possibilidade de um encontro isolado dos ruídos do mundo, a contradição de um
encontro entre duas solidões que não se esvaziam de identidade por se verem ao
espelho. A um espelho negro.
2 comentários:
E este texto é muito bom. Parabéns. Despertou-me o interesse pelo livro.
Obrigado. É um excelente livro.
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