«Se há uma frase que cheire mal, não é pondo-lhe perfume
que a vamos resolver. O que interessa é perceber porque é que cheira mal». Quem
o afirma é Frederico Lourenço, em resposta a uma pergunta de Filipa Melo onde se
citava uma tal de frei Herculano Alves. Desconfio que João Paulo de Jesus (n. 1967)
subscreva a afirmação de Lourenço, a favor de uma tradução do texto bíblico que
permita olhar certo tempo ancestral em função do que nele vigorava e não do que
a historiografia foi cristalizando ao longo dos séculos. Nos primeiros
parágrafos de O Domínio Material (Companhia das Ilhas, Setembro de 2017) somos
enviados para a Jerusalém de Herodes. Maria, uma virgem de quinze anos, é
levada do Templo para casa do noivo, de seu nome José. Dez soldados abordam-na,
dizendo-lhe que foi escolhida. Por quem? Para quê? Levam-na até Jericó, onde
Herodes passaria os meses de Inverno. Aí será violada pelo próprio rei, antes
de ser reconduzida a Nazaré. José, o noivo, receberá de um oficial um papiro
onde se ordena que case com Maria a troco de vinte denários de prata. Maria estava
grávida. Neste romance de estreia, o papiro de Herodes será o leitmotiv a
partir do qual a acção se desencadeará. José guardá-lo-á numa arca, «dobrado em
quatro e protegido por uma bolsa de pele de cordeiro» (p. 13). Só após a sua
morte, a criança parida por Maria, inicialmente dada como morta, terá acesso ao
texto. O confronto com as palavras de Herodes abrirá as portas de uma obscura
indagação acerca das origens, do eu, da identidade.
João Paulo de Jesus é
meticuloso na descrição das paisagens, transporta-nos com as personagens pelas
montanhas da Judeia, leva-nos a Damasco, mostra-nos a planície de Jizreel, conduz-nos
como se fôssemos ao acaso de aldeia em aldeia, percorrendo encostas, no meio de rebanhos, a
pernoitar em estábulos. Apesar do referencial bíblico, o cuidado com a
linguagem e com certos elementos narrativos resgata a obra desse poço sem fundo
que é o das chamadas aproximações literárias, mais ou menos fantásticas, a uma
história que estará sempre por contar. O ritmo não é de intriga nem de romance pseudo-histórico,
é antes o de um relato sequencial, mas elíptico, do conjunto de acções que
inspiram verosimilhança na figura da personagem central: um homem em busca da
sua identidade. A esse homem não é dado nome, apenas são atribuídas acções, deslocações,
parcas falas: «Tornara-se impenetrável a qualquer questão vinda daqueles com
quem partilhava a casa» (p. 86). Vemo-lo entre gente andrajosa, suja,
descarnada, ao lado de indigentes como se fosse um deles, e talvez seja. Observamo-lo enquanto vagabundeia no encalço de uma explicação para um destino
obscuro. Partilha os pastos e as fogueiras com outros pastores, visita o primo
João, aceita a refeição de um leproso, tenta aclarar o que permanece obscuro
dormitando de abrigo em abrigo, percorre sozinho e sem montada as estradas do
Jordão, perscrutando o mundo em redor.
De cada vez que a personagem central deste livro se afasta de um lugar, é
como se nos aproximasse da sua essência. Porque este homem é um pastor sem
rebanho, é um bastardo, é alguém que conhecerá a fome, a privação material, a
indigência e a miséria dos seus semelhantes sem entender o que ele próprio é e
representa entre os demais. Certa vez, ao cruzar-se com os soldados da legião:
«Teve a certeza de que a vida não seria outra coisa senão aquilo, uma orla
esboroada em cujo centro definharia o pouco amor que os poderia resgatar, mas
que remotamente os vergava, abreviando a luz e os dias, soprando as candeias
para que a escuridão fosse testemunha dos gestos que aí ocultavam» (p. 90). Que
fé poderemos nós, leitores, antever em personagem assim pensada?
Do encontro com Baptista pouco resultará. Sobre os baptizados, diz a um indigente a seu
lado sentado: «Não ficaram mais limpos por ele os mergulhar no rio. O peixe só
cheira a peixe depois de sair da água» (p. 118). É duvidoso que quem assim fala
transcenda “o domínio material” da sua condição. Parece ser nesse mesmo domínio
que João Paulo de Jesus pretende encerrar a sua personagem, da qual nos é dado
apenas saber que ao longo da peregrinação vai sendo tomado por mendigo. E é como mendigo que se reconhece entre os outros. Nós
sabemos que a sua condição aparentemente mendicante tem pouco que ver com as
vestes ostentadas, com o aspecto, com a errância. É a condição de quem busca identidade
num mundo de perdidos, um cabrão acagaçado, como lhe dirão os discípulos do
Baptista, escondido como um proscrito, talvez, que ao saber por quem foi gerado
porventura preferisse manter a verdade dobrada em quatro dentro de uma bolsa
feita com pele de cordeiro. No final, a grande questão que se nos coloca é se um homem se define pelos genes? Se assim for, este herdeiro (ainda que bastardo) de Herodes deverá ser considerado Rei dos Judeus.
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