segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

O GIGANTE ENTERRADO

Por razões profissionais, mas também alguma curiosidade, cheguei ao universo do mais recente Prémio Nobel da Literatura. Cheguei pelo pior dos caminhos, segundo me informa amigo conhecedor da obra completa. Nunca tinha lido nada de Kazuo Ishiguro (n. 1954), o japonês inglesado a quem António Lobo Antunes se referiu recentemente como “aquela coisa”. A leitura de O Gigante Enterrado (Gradiva, 3.ª edição, Novembro de 2017) deixou-me mais uma vez na dúvida sobre o discernimento da Academia, que já sabemos ser pouco ou, pelo menos, não de fiar. É verdade que não sou adepto de literatura fantástica, nunca li Tolkien nem C. S. Lewis, também não tenho paciência para sagas que tanto entusiasmam meio mundo como as Crónicas de Gelo e Fogo. Isto deixa-me sem argumentos para avaliar uma narrativa repleta de ogres ameaçadores, duendes frenéticos, curandeiras e viúvas shakespearianas, bosques enfeitiçados, monges insidiosos, dragões adormecidos, velhas ardilosas, cavaleiros, guerreiros, cães monstruosos. Tudo o que possa dizer sobre o assunto é mais fruto do preconceito do que de conhecimentos profundos em matérias congéneres. 
Aqui e acolá, ecos de tragédias gregas tais como As Bacantes e o Prometeu Agrilhoado, citações que parecem provir de um Dom Quixote de la Mancha ou de romances de cavalaria que li em versões truncadas nos tempos de juventude, deixam-me mais à vontade. O Nome da Rosa, de Umberto Eco, também vem à baila a determinada altura: «Os monges que aqui vivem não devem conhecer aquilo que vêem cada dia» (p. 182). Mas Ishiguro envia-nos para os lendários tempos do Rei Artur, na companhia de um casal de idosos que resolve empreender uma viagem ao encontro de um filho há muito perdido. Sobre eles paira uma névoa de esquecimento, produzida pelo bafo de um dragão enfeitiçado pelo mago Merlim. Entre as várias personagens com quem se vão cruzando ao longo da peregrinação, Axl e Beatrice conhecem dois cavaleiros, aparentemente, com a mesma missão: matar o terrível dragão Querig. 
O tempo é de paz entre saxões e bretões, uma paz podre como podre parece ser a paz destes tempos mais reais. Podemos tentar ler O Gigante Enterrado como uma parábola do inconsciente, o que desculparia certas incongruências e o tom disparatado de algumas sequências. Mas falta profundidade às personagens, tudo parece vago e inconsistente. O estilo depurado de Ishiguro, única e exclusivamente preocupado em contar uma história, talvez mais empenhado até em divertir o leitor do que em contar uma história, renega qualquer intenção aforística, não perde tempo com reflexões. Não há momentos de introspecção ao longo das quatrocentas páginas do romance, é tudo ritmo e acção e coisas a acontecer. A mais pertinente das dúvidas surge já no fim, pela voz do velho Axl em conversa com a sua amada Beatrice: «Seria possível o nosso amor não ter ficado tão forte com o passar dos anos se a névoa não nos tivesse roubado as recordações como fez? Talvez isso tenha permitido que velhas feridas sarassem» (p. 404). Tudo espremido, vamos dar a isto: o tempo tudo cura, na medida em que o esquecimento ajuda a sarar feridas. Parca conclusão. 
Podemos também tentar ler O Gigante Enterrado como uma ode ao amor. O velho casal é suficientemente marcante para que assim o entendamos, embora entre eles a poesia seja a sua própria coexistência. Ele perdoou-lhe uma traição, ela perdoou-lhe o orgulho. Temos, deste modo, um elogio do perdão. Tanto este elogio do perdão como as loas ao esquecimento são extensíveis à questão essencial aflorada no romance, ou seja, a divisão entre saxões e bretões enquanto exemplo do que divide povos e culturas. Esticando a corda, talvez demasiado, podíamos dizer que conflitos como, a título de exemplo, o perpetrado entre Israel e a Palestina só serão ultrapassados quando ambos aprenderem a esquecer. Havendo pelo meio guerreiros como Wistan, cuja missão é matar o dragão e devolver a memória aos povos, haverá divisão. E da divisão nascerá o conflito. A simplicidade do raciocínio é sedutora, mas não convence. Precisamente pelo simplismo da mensagem. Ishiguro, nascido em Nagasáqui, sabe que o esquecimento não sara feridas, apenas as disfarça. Recalcar pode suspender a raiva, mas o que realmente a refreia é a compreensão dos recalcamentos, é não nos deixarmos dominar por eles. 

4 comentários:

Pedro Serpa disse...

Ainda não o li, mas aqui há tempos apanhei esta entrevista
(https://www.newstatesman.com/2015/05/neil-gaiman-kazuo-ishiguro-interview-literature-genre-machines-can-toil-they-can-t-imagine)
que me deu vontade de me atirar a ele.

Abraço

hmbf disse...

Não é a minha praia, mas vou ler a entrevista. Abraço,

Carlos Ramos disse...

Experimentei ler "Nocturnos" já foi há uns anos e gostei muito. Nada tem a ver com a descrição deste livro. O nobel é como qualquer outro prémio, é o que é....garante o que garante. Fama e dinheiro nem sempre são sinónimos de qualidade literária.

Abraço

hmbf disse...

O tal amigo que leu a obra toda sugeriu-me "Os Inconsolados". Acho que vou insistir...