Por razões profissionais, mas
também alguma curiosidade, cheguei ao universo do mais recente Prémio Nobel da
Literatura. Cheguei pelo pior dos caminhos, segundo me informa amigo conhecedor
da obra completa. Nunca tinha lido nada de Kazuo Ishiguro (n. 1954), o japonês
inglesado a quem António Lobo Antunes se referiu recentemente como “aquela
coisa”. A leitura de O Gigante Enterrado (Gradiva, 3.ª edição, Novembro de
2017) deixou-me mais uma vez na dúvida sobre o discernimento da Academia, que
já sabemos ser pouco ou, pelo menos, não de fiar. É verdade que não sou adepto
de literatura fantástica, nunca li Tolkien nem C. S. Lewis, também não tenho paciência
para sagas que tanto entusiasmam meio mundo como as Crónicas de Gelo e Fogo.
Isto deixa-me sem argumentos para avaliar uma narrativa repleta de ogres
ameaçadores, duendes frenéticos, curandeiras e viúvas shakespearianas, bosques
enfeitiçados, monges insidiosos, dragões adormecidos, velhas ardilosas,
cavaleiros, guerreiros, cães monstruosos. Tudo o que possa dizer sobre o
assunto é mais fruto do preconceito do que de conhecimentos profundos em
matérias congéneres.
Aqui e acolá, ecos de tragédias gregas tais como As Bacantes
e o Prometeu Agrilhoado, citações que parecem provir de um Dom Quixote de la
Mancha ou de romances de cavalaria que li em versões truncadas nos tempos de
juventude, deixam-me mais à vontade. O Nome da Rosa, de Umberto Eco, também vem
à baila a determinada altura: «Os monges que aqui vivem não devem conhecer
aquilo que vêem cada dia» (p. 182). Mas Ishiguro envia-nos para os lendários
tempos do Rei Artur, na companhia de um casal de idosos que resolve empreender
uma viagem ao encontro de um filho há muito perdido. Sobre eles paira uma névoa
de esquecimento, produzida pelo bafo de um dragão enfeitiçado pelo mago Merlim.
Entre as várias personagens com quem se vão cruzando ao longo da peregrinação, Axl e
Beatrice conhecem dois cavaleiros, aparentemente, com a mesma missão: matar o
terrível dragão Querig.
O tempo é de paz entre saxões e bretões, uma paz podre
como podre parece ser a paz destes tempos mais reais. Podemos tentar ler O
Gigante Enterrado como uma parábola do inconsciente, o que desculparia certas
incongruências e o tom disparatado de algumas sequências. Mas falta
profundidade às personagens, tudo parece vago e inconsistente. O estilo
depurado de Ishiguro, única e exclusivamente preocupado em contar uma história,
talvez mais empenhado até em divertir o leitor do que em contar uma história,
renega qualquer intenção aforística, não perde tempo com reflexões. Não há
momentos de introspecção ao longo das quatrocentas páginas do romance, é tudo
ritmo e acção e coisas a acontecer. A mais pertinente das dúvidas surge já no
fim, pela voz do velho Axl em conversa com a sua amada Beatrice: «Seria
possível o nosso amor não ter ficado tão forte com o passar dos anos se a névoa
não nos tivesse roubado as recordações como fez? Talvez isso tenha permitido
que velhas feridas sarassem» (p. 404). Tudo espremido, vamos dar a isto: o
tempo tudo cura, na medida em que o esquecimento ajuda a sarar feridas. Parca conclusão.
Podemos também tentar ler O Gigante Enterrado como uma ode ao amor. O velho casal
é suficientemente marcante para que assim o entendamos, embora entre eles a
poesia seja a sua própria coexistência. Ele perdoou-lhe uma traição, ela
perdoou-lhe o orgulho. Temos, deste modo, um elogio do perdão. Tanto este
elogio do perdão como as loas ao esquecimento são extensíveis à questão
essencial aflorada no romance, ou seja, a divisão entre saxões e bretões
enquanto exemplo do que divide povos e culturas. Esticando a corda, talvez
demasiado, podíamos dizer que conflitos como, a título de exemplo, o perpetrado
entre Israel e a Palestina só serão ultrapassados quando ambos aprenderem a
esquecer. Havendo pelo meio guerreiros como Wistan, cuja missão é matar o
dragão e devolver a memória aos povos, haverá divisão. E da divisão nascerá o
conflito. A simplicidade do raciocínio é sedutora, mas não convence.
Precisamente pelo simplismo da mensagem. Ishiguro, nascido em Nagasáqui, sabe
que o esquecimento não sara feridas, apenas as disfarça. Recalcar pode
suspender a raiva, mas o que realmente a refreia é a compreensão dos recalcamentos,
é não nos deixarmos dominar por eles.
4 comentários:
Ainda não o li, mas aqui há tempos apanhei esta entrevista
(https://www.newstatesman.com/2015/05/neil-gaiman-kazuo-ishiguro-interview-literature-genre-machines-can-toil-they-can-t-imagine)
que me deu vontade de me atirar a ele.
Abraço
Não é a minha praia, mas vou ler a entrevista. Abraço,
Experimentei ler "Nocturnos" já foi há uns anos e gostei muito. Nada tem a ver com a descrição deste livro. O nobel é como qualquer outro prémio, é o que é....garante o que garante. Fama e dinheiro nem sempre são sinónimos de qualidade literária.
Abraço
O tal amigo que leu a obra toda sugeriu-me "Os Inconsolados". Acho que vou insistir...
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