Nenhum pano divide palco de plateia, nenhum muro a separar os
intervenientes, apenas a voz se levanta à descida dos corpos. E assim que se
levanta, é como se tivéssemos de facto descido à condição de meros ouvintes. O
público entra, encontra no palco dois actores sentados a uma mesa. Sobre o
tampo da mesa, molhos de folhas. Quando a luz baixa, a leitura começa. O
discurso agride quem o escuta, inquieta, desassossega, perturba, revoluteia a
imaginação e desconcerta. O texto cumpre a sua função. Alguém pergunta: isto é
teatro? A essa pergunta, responde o próprio texto: «os romances reduziram-se a
diálogos e as peças de teatro às didascálias».
O texto de Dimítris Dimitriádis
(n. 1944) foi escrito em 1978, tendo estreado apenas em 1994. Não é certo o que
tenha motivado tão violenta prosa, anterior às guerras da Jugoslávia e do
Kosovo, posterior à ditadura dos coronéis. No mesmo ano em que estreou, um
outro grego, de seu nome Theo Angelopoulos, fazia regressar à pátria um
comovente realizador em busca das origens. “O Olhar de Ulisses” seria a
perspectiva perdida de um país desaparecido no meio de ruínas. O texto de
Dimitriádis, muito mais cruel e violento, tem de comum com o filme de
Angelopoulos o corte umbilical, a separação da pátria, o afastamento, a denúncia de uma devastação
iniciada pelas raízes.
A epidemia abatida sobre o país distópico para o qual somos
enviados é a da esterilidade: «Naquele ano, nenhuma mulher procriou». À
esterilidade corresponde uma degenerescência, porventura alegórica, que,
afinal, não tem tempo nem situação a delimitar o sentido. Podia ser hoje, em
cenário de crise, o cenário de guerra alegoricamente aludido. Tal como Thomas
Bernhard o sentia relativamente à Áustria, Dimítris Dimitriádis o sentirá relativamente a certa Grécia. Mas não poderá essa Grécia dele ser também certo nosso Portugal?
A agressividade
inquietante da paisagem alegoriza a violenta ruptura do cidadão para com a
pátria: «a ideia de nação tinha, doravante, desaparecido definitivamente».
Generais suicidam-se em frente aos seus soldados, soldados que sonham com
cintos a desprenderem-se da cintura, subindo ao pescoço para os estrangular,
guardiões de um povo desertor, agastado pelas vicissitudes da sua própria História,
tombado num vazio de palavras vagas, entre as quais a mais vaga de todas é a
palavra esperança: «e tudo o que podem dizer é que só desejam uma coisa, uma
grande catástrofe com eles dentro».
O discurso ácido, narrado por Jorge
Silva Melo e rematado por Isabel Muñoz Cardoso, é uma declaração de morte. Morte
de um país? Morte dos cidadãos? Morte do artista, personificado na figura da
mulher estéril? Quem morre como país? «Quem não viu as pessoas morrerem nas ruas
marteladas por uma mão invisível não pode compreender o que representa, o que é
a morte de um país, tal como aquele que não sentiu o seu próprio corpo
inexistente, desperdiçado, injustificado, insignificante, indesejável,
insaciado, a sua famosa força motora interrompida, quebrada, cortada pelo fogo
intestino da emoção». Eis-nos no Milénio da Esquizofrenia Multiforme
Consciente, expressão que por certo agradaria a Deleuze e Guattari. «O direito
dos melancólicos impôs-se. Os taciturnos e os solitários puseram-se a
legislar».
Se o universo é governado pela medida de forças entre amor e discórdia,
como queria Empédocles, neste momento a discórdia ganha vantagem. Pergunto:
qual o lugar do amor nesta morte? É o lugar de uma mulher estéril, ventre seco,
corroído pela decadência do país onde ela já não procria, não pode procriar,
por estar impedida de o fazer pela lei dos melancólicos. Desconfio, porém, que
por detrás desta fúria subsista uma forma de amor maior do que nos é possível entender. Não há ódio que sobreviva isolado. O que morre como país
nesta leitura, na representação da palavra, é o umbigo, réstia de cordão onde
sufoca o ser ensimesmado, indiferente, indolente, acomodado. O que morre é o
que mais nos mata, enquanto homens, enquanto criadores, enquanto cidadãos,
enquanto país.
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