quarta-feira, 14 de março de 2018

SE AO MENOS A CHUVA


Andava às voltas
no topo de si mesmo
e do monte.
Trepara a encosta
como em pequeno
trepava às árvores:
para ver melhor.

Vivia tão longe da água
que tinha a boca seca.

Agora andava às voltas
cheio de sede
a esgotar-se, a suar.

Porque não paras?,
perguntar-lhe-ia, se pudesse
entrar neste poema.

Não havia nada no cimo de si
nem do monte
— apenas o azul e algumas aves
que respiram mais alto.

A cidade ficava a meio caminho
entre o céu e a terra
(o céu lá para cima, ainda depois do monte,
a terra cá para baixo, um pouco antes da sede).

Ele andava às voltas com a vida:
atirava-lhe pedras, gritava
(se ao menos a chuva! se ao menos a chuva!)
como quem não encontra.

Só mais tarde entendi o que procurava:
um mar.



Filipa Leal (n. 1979), in A Cidade Líquida«Se tivermos em conta aquilo que aparece com a poesia portuguesa mais perto de nós (onde predominam as memórias esparsas, o lirismo difuso, uma certa vulnerabilidade), podemos afirmar sem hesitações que Filipa Leal tem uma personalidade fortemente demarcada. (…) Do ponto de vista do estilo, Filipa Leal utiliza os mais variados procedimentos: há uma sugestão insistente de oralidade (…), um jogo muito sóbrio de usos da metáfora (nenhuma dimensão decorativa ou expressiva, nenhum lirismo derramado), uma distorção permanente da forma habitual das frases (…), um sentido da redundância por vezes semântica (…). Inesperadas enumerações, uso dos parênteses. Ou ainda: castigos, tonturas, despedidas. E ainda frases que se autocorrigem, frases que se desmentem. A insistência no "não"» (Eduardo Prado Coelho, Público, 1 de Dezembro de 2006). 

5 comentários:

Anónimo disse...

Se ao menos a poesia fosse poesia...

Anónimo disse...

Não vejo nada nas palavras de EPC que seja elogioso. A sério, Henrique, gostas desta coisa deslavada e sensaborona? Há gostos que são discutíveis, e por isso discutem-se, mas há coisas que um leitor treinado e consciencioso não pode, sem má-fé, deixar passar. De que é que servem as tuas décadas de leitor? Não serviram para nada? Nem um pouquinho de sentido crítico?

hmbf disse...

Anónimo, a questão do gosto não se coloca aqui. Se se colocasse, eu nunca teria partilhado poemas teus neste weblog.

Anónimo disse...

Ponto 1: Não partilhaste. Não escrevo poemas.
Ponto 2: Qual é a questão que se coloca aqui?

hmbf disse...

Divulgar, é a questão. Mostrar, dar a ver. E depois cada um retira as suas conclusões. Quando leio um livro, vejo um filme, aprecio uma qualquer obra de arte, a questão do gosto é a última que se me coloca. O gosto guardo-o para a culinária. Na arte o gosto não interessa, interessa se uma obra produz algum efeito em nós que nos leve a pensar, reflectir, emocionar, que nos cause dúvidas, atormente, inquiete, desassossegue, que nos faça rir, cause repulsa, etc... E depois é tentar perceber o porquê desse efeito. Por exemplo, você diz: «Não vejo nada nas palavras de EPC que seja elogioso.» É porque não sabe ler. E esta minha conclusão nem advém daquilo que você diz não ver, pois o que há de claramente elogioso no texto citado de EPC foi cortado. Aqui está um excerto. A minha conclusão sobre as suas dificuldades estão no facto de você partir do princípio de que o texto deveria ser elogioso. Isso é um preconceito prejudicial à leitura, sobretudo à leitura crítica. Por que haveria o texto de ser elogioso? Não me interessam os putativos elogios no texto crítico, interessa-me a exploração do objecto em análise, o que pode ser dito acerca dele para clarificá-lo ou dissecá-lo ou colocá-lo ao serviço da imaginação, do saber, da reflexão, do pensamento. Você denota não perceber isso, coloca-se face ao poema como eu me coloco perante um bitoque.