Valério Romão (n. 1974) iniciou com a publicação de
Autismo (Abysmo, 2012) uma trilogia a que deu o nome de Paternidades Falhadas.
O da Joana (Abysmo, 2013) foi o segundo volume. A trilogia cumpre-se agora com
Cair Para Dentro (Abysmo, Fevereiro de 2018), romance onde a figura paterna prima
pela ausência. Virgínia, a mãe, e Eugénia, a filha, são as personagens centrais
deste livro. Chamar-lhes personagens centrais pode ser algo redutor. Na
realidade, são duas vozes narrativas que se interligam e revezam ao longo do
romance. A primeira parte, muito breve, introduz-nos no universo dessas duas
figuras femininas. “Com mãos” porque Eugénia ainda vai pela mão de Virgínia, «a
mãe que só vestia de preto desde que o pai se fora, viúva precoce sem direito a
cadáver» (p. 17). O que para uma poderá ser interpretado como perda, para outra
será abandono. Certo é que a ausência da figura masculina neste núcleo familiar
é um estigma desde o início. Pouco ficaremos a saber acerca desse pai
que não seja através da figura da mãe abandonada e da filha superprotegida. Mas
esta superprotecção materna, aprofundada num segundo e extenso momento
intitulado “sem mãos”, transporta em si mesma uma fortíssima ameaça.
Virgínia
não se vê apenas obrigada a ser pragmática, como a filha eufemisticamente a caracteriza.
Ela chega a ser claustrofóbica, fria e castradora, ele é a frieza da razão
impondo-se ao tecido emocional que afasta mãe e filha. Esta, sentimentalmente
fragilizada, aprenderá a superar as inclinações poéticas com o chicote da
filosofia. Sem mãos ambas, mãe e filha, porque o que ressalta da relação é o
desamparo de dois seres ligados pela consanguinidade, mas entregues a si
próprios na solidão das suas vidas.
Referências ao Facebook, ao Youtube e a
Lisboa permitem-nos situar o romance no tempo e no espaço, apesar dos hiatos que
Valério Romão introduziu numa narrativa não linear. A linguagem é sóbria, embora
o estilo penda amiúde para uma violência emocional segura de si mesma. Um episódio marcante, pelo que tem de definidor das personalidades
envolvidas, surge quando Eugénia desespera com a perda de uma gata. O que faz Virgínia?
«Trouxe-me um alguidar vazio para o quarto, meteu-mo ao lado da cama e
declarou, Eugénia, chore aqui para dentro, não desperdice nem uma lágrima,
acendi uma velinha a Santo Antão, padroeiro e protector dos animais e
disse-lhe, meu Santo, ajude a minha filha (…) a encontrar a Maria, prometo-lhe
um alguidar de amor e sofrimento medido em lágrimas se encontrarmos a gatinha
sã e salva, e, apontando para mim, chore, Eugénia, chore como nunca chorou, que
um alguidar deste tamanho ainda leva algum tempo a encher» (p. 61).
Subitamente, o «alguidar de amor e sofrimento medido em lágrimas» ganha uma
dimensão simbólica fortíssima nesta história. É como se ao longo do romance ele
fosse sendo preenchido com desastres e frustrações, a doença e a incerteza, amores
falhados, ruína e desprezo, agrura, ódio, medo, solidão, ressabiamentos,
abandono, desamparo, é como se ao longo do romance aquele recipiente de
sofrimento fosse não apenas um talismã da esperança, mas a urna onde mãe e
filha depositam os restos mortais de um pai ausente, cadáver perdido em memórias turvas.
Quando Eugénia chega a casa, vinda da festa de final de
curso, Virgínia diz-lhe: «a vida é isto, Eugénia, desordem, confusão, o mundo é
isto, a força das nossas mãos sem a tenacidade do coração é espúria e incerta e
a força das nossas mãos sem a lucidez da razão é violenta e boçal» (pp. 93-94).
Dirá mais este aforismo da mãe ou da filha? Será ele definidor de uma ou
de outra? Não poderá resultar do que numa se reflecte da outra? É neste jogo de
reflexos que Virgínia determina Eugénia e Eugénia determina Virgínia, ambas
reflectindo-se num alguidar repleto de lágrimas — «Animais à espera da redenção
pela espora…» (p. 114) —, lágrimas que podiam ser cinza, por no final ficarmos
também nós, leitores, sozinhos perante o afastamento das personagens.
Talvez seja este o maior conseguimento do livro, gerar entre as personagens e o leitor
uma cumplicidade que nunca chega a ser invasiva, para no final tudo reduzir a
um quotidiano que é em si mesmo retrato desgastado pela passagem do
tempo, um rosto a desfigurar-se na memória, a imagem devorada pelo
esquecimento. Se a doença de Alzheimer faz parte do processo, não é o que
define a narrativa. Ela é apenas mais um elemento, porventura derradeiro, nesse
complexo processo de esquecimento, perda e abandono que excede as fronteiras do
que pode ser definido enquanto doença. No limite, é da doença de se estar vivo
que aqui se trata: «o acidente que começou no hospital onde nos arrancaram à
palmada a primeira respiração» (pp. 193-194).
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