O debate acerca da eutanásia é dos mais difíceis de
manter sob o jugo exclusivo da razão, na medida em que está sujeito a
percepções íntimas, altamente subjectivas, e emocionais acerca do mais antigo
dos problemas humanos: o sentido da vida. Não é possível pensar o sentido da
vida humana sem o relacionar com a morte, a única certeza, afinal, que a
natureza nos oferece sobre isto de estar vivo. Estar vivo é estar à morte,
dizia o poeta. Deixemos de lado credos e convicções sobre aléns inverosímeis.
Concentremo-nos na vida na Terra, a única de que estamos certos por ser aquela
que experimentamos... em vida.
Eutanásia significa morte serena, morte
pacífica. Partimos do princípio de que nenhum ser humano deseje à hora da morte
outra coisa senão paz e serenidade. Já que temos de abandonar este mundo, que o
façamos em sossego. Medo da morte não tenho, tenho é do sofrimento,
diz-se. Nos funerários, muitas vezes consolamos os vivos referindo-nos aos
mortos nestes termos: coitadinho, estava a sofrer tanto, foi melhor assim.
Até prova em contrário, devemos presumir que toda a gente no mundo ambicione
uma morte serena e pacífica. A questão etimológica não é meramente académica,
ela recoloca-nos no lugar certo do debate. Quando se discute a possibilidade da
eutanásia não se discute outra coisa senão o direito que todos devem ter a uma
morte serena, pacífica.
“Desvalorizar a vida humana” não pode ser,
portanto, pretender oferecer-lhe paz e serenidade num determinado momento, o
mais importante de todos, o momento em que a vida humana se transforma noutra
coisa (independentemente de qual seja). Por “desvalorizar a vida humana”
entendeu eu, por exemplo, submetê-la à servidão, explorá-la economicamente,
impedi-la de se afirmar, desenvolver, consolidar na pessoalidade, enquanto
livre, singular, única. Por outro lado, para que a valorizemos também não é
necessário adoptar uma doutrina da “santidade da vida humana”. Ao fazê-lo,
estaremos a ceder a uma perspectiva única da vida humana, uma perspectiva
aniquiladora da pluralidade de perspectivas que a nossa vida não só deve
aceitar como promover.
Facilmente se constata no comunicado do PCP acerca da
“provocação da morte antecipada” esta necessidade de distinguir uma noção de
“santidade da vida humana” de uma noção de “valor da vida humana”, a qual nos
leva a admitir decisões que parecem entrar em contradição com uma recusa da
eutanásia: «O PCP continuará a lutar para a concretização, no plano político e
legislativo, de medidas que respondam às necessidades plenas dos utentes do
Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente (…) na garantia do direito de cada um à
recusa de submeter-se a determinados tratamentos; na garantia de a prática
médica não prolongar artificialmente a vida; (…)». Ou seja, admitimos que um
doente recuse submeter-se a determinado tratamento e que um médico não
prolongue artificialmente a vida. Porquê? Primeiro, porque julgamos que um
doente tem o direito a não querer ser tratado, ou seja, tem o direito a decidir
sobre as condições em que quer viver; segundo, porque a vida artificial já não
é vida.
Julgo não ser este o espaço para uma discussão exaustiva
sobre os vários tipos de eutanásia questionáveis (voluntária, involuntária, não
voluntária), mas não vejo como possamos não chamar “eutanásia voluntária” à
recusa consciente de tratamentos que implicarão uma antecipação da morte, assim
como não percebo a diferença entre “eutanásia não voluntária” e a decisão de um
médico não prolongar uma vida artificial. No limite, estamos a falar
exactamente das mesmas coisas. Poder-se-á argumentar que estando ambas
previstas na lei, será escusado uma nova lei que regule a eutanásia de um modo
mais abrangente. De certo modo, é isso que faz o PCP:
«A ciência já hoje dispõe de recursos que, se utilizados
e acessíveis, permitem diminuir ou eliminar o sofrimento físico e psicológico.
Em matérias que têm a ver com o destino da sua vida, cada cidadão dispõe já
hoje de instrumentos jurídicos (de que o “testamento vital” é exemplo, sem
prejuízo dos seus limites) e de soberania na sua decisão individual quanto à
abstinência médica (ninguém pode ser forçado a submeter-se a determinados
tratamentos contra a sua vontade). A prática médica garante o não prolongamento
artificial da vida, respeitando a morte como processo natural recusando o seu protelamento
através da obstinação terapêutica. Há uma diferença substancial entre manter
artificialmente a vida ou antecipar deliberadamente a morte, entre diminuir ou
eliminar o sofrimento na doença ou precipitar o fim da vida».
De acordo, até à última frase. A redacção está
correcta, mas leva-nos a questionar qual a diferença entre interromper uma vida
artificial e antecipar a morte? Nenhuma. Qual a diferença entre recusar um
tratamento vital e precipitar o fim da vida? Nenhuma. Logo, não me parece
lógico estar contra a eutanásia admitindo-a em certas circunstâncias. «A
oposição do PCP à eutanásia tem o seu alicerce na preservação da vida», excepto
quando esta preservação implique um prolongamento artificial da mesma ou a
coacção de um doente obrigando-o a tratamentos que ele não quer fazer.
Dignificar a vida em vida, portanto, admite excepções ao próprio valor que
damos à vida. Aceitamos que uma vida artificial não vale tanto como uma vida
natural, aceitamos que o livre arbítrio de um ser humano vale mais que a sua
própria vida (ou o prolongamento dela em circunstâncias de enfermidade). Não
percebemos, deste modo, por que é que nestas duas circunstâncias concretas o
«valor intrínseco da vida» não se sobrepõe. Ou percebemos. É porque, na
realidade, sabemos que o valor intrínseco da vida tem os seus limites.
O problema estará em definir os limites do valor
intrínseco da vida. Para uns, o direito a viver sem sofrimento delimita esse
valor. Por si só não é grande argumento. Há demasiada subjectividade no sofrimento
(daí que cada projecto de lei o tabele de modo diferente). Para outros, não há
limites ao valor intrínseco da vida (estão no seu direito, até podem condenar o
suicídio). Por fim, há aqueles para quem o valor intrínseco da vida se submete
à liberdade que cada um deve ter sobre a decisão do que é uma vida digna. Se
alguém que não está no uso pleno das suas capacidades e faculdades julgar que a
sua vida não é digna, que direito tenho eu de lhe impor o contrário? Não será
muito mais indigna está imposição? O exemplo de Ramón Sampedro pode servir de
paradigma. Com base em que direito poderia eu impor àquele homem uma noção de
vida digna? Eu não estava a viver a vida dele, ele é que estava a viver a sua
vida. Logo, só ele poderia julgar se era digna ou não a vida que estava a
viver. Tendo Ramón escolhido a morte, não será nossa obrigação garantir que ela se realize da melhor forma possível?
Penso igualmente em André Gorz, que perante o sofrimento
da sua amada (cancro endométrio) resolveu pôr-lhe um fim, suicidando-se de
seguida. Tinham ambos mais de 80 anos. Gorz deixou um testemunho tremendo desta
vivência: “Carta a D.”. Poderá alguma coisa indignar-nos na sua decisão? Não
vejo como o direito a matar ou a matar-se, mediante circunstâncias delimitadas
pela lei, possa ser considerado um «retrocesso civilizacional». Parece-me muito
mais discutível o direito à tortura, o direito a prolongar essa tortura que é
viver quando se julga já não fazer qualquer sentido a vida. Parece-me muito
mais humanista compreender e aceitar as decisões de Gorz e Ramón do que
condená-los, parece-me muito mais solidário estar ao lado deles no sofrimento
de uma decisão que em nenhum momento foi leviana. Quanto ao «princípio da
igualdade», cabe-nos questionar: que igualdade pode haver entre alguém que em
querendo se mata e alguém que em querendo matar-se o não consegue/pode fazer?
Novamente o caso Ramón Sampedro é um bom exemplo de como não faz sentido
advogar o princípio da igualdade em matéria onde tudo é desigual.
Por fim, gostaria de referir um forte argumento das
pessoas que estão contra a eutanásia. É também um forte argumento em matéria de
pena de morte. As pessoas que estão contra a eutanásia, por vezes, argumentam
que os médicos podem enganar-se, o veredicto médico pode estar errado, Stephen
Hawking não tinha parcos meses de vida quando lhe diagnosticaram a doença, o
que parece irreversível por vezes torna-se reversível, a ciência está sempre a
progredir, etc… É, quanto a mim, um forte argumento, daqueles que reforçam a
dimensão problemática do debate. Quanto a isto, não podemos senão apoiar-nos na
fé, aqueles que a têm, ou na razão, partindo do princípio de que ninguém foi
privado dela à nascença. Como matérias de fé não sustentam leis, devemos dar
mais valor ao que a razão nos diz. E o que a razão nos diz parece-me bem
explicitado na citação de Peter Singer com que terminarei este texto:
Ao número muito pequeno de mortes desnecessárias que
podiam ocorrer no caso da legalização da eutanásia devemos contrapor a grande
quantidade de dor e de aflição que sofrerão os pacientes que se encontram de
facto em fase terminal de doenças se a eutanásia não for legalizada. (…) Talvez
um dia seja possível tratar todos os doentes terminais e pacientes incuráveis
de uma forma tal que ninguém requeira a eutanásia e a questão deixe de se pôr;
mas de momento não passa de um ideal utópico e não constitui, de forma alguma,
um motivo para recusar a eutanásia a todos aqueles que têm de viver e de morrer
em condições muito menos confortáveis. Em todo o caso, é altamente paternalista
dizer a pacientes às portas da morte que são agora tão bem tratados que não
precisam da opção da eutanásia. Seria mais consentâneo com o respeito pela
liberdade e pela autonomia individuais legalizar a eutanásia e deixar os pacientes
decidir se a sua situação é insuportável ou não.
(In Ética Prática, trad. Álvaro Augusto Fernandes,
Gradiva, 2.ª edição, Setembro de 2002, pp. 217-219)
3 comentários:
Gosto da forma como refletiste o tema e até do título que lhe deste "O Problema da Eutanásia". E ainda o não teres utilizado o argumento da "Morte com dignidade" referiste, antes, a norte serena, a morte tranquila. Isto porque não considero que uma morte após sofrimento extremo e continuado, seja uma morte indigna.
Depois, penso que a racionalidade serve para quando temos saúde. Ou, pelo menos, um controlo mais ou menos efectivo da nossa vida.
Com isto, não quero por em causa a oportunidade de o Parlamento debater e decidir. Sei que há pessoas que encontrarão alguma serenidade se a lei for aprovada. E estão no seu direito.
A verdade é que as sociedades tendem a simpatizar mais com os direitos em abstrato (como o direito à vida, ou o direito à liberdade de expressão) do que com as ações em que se concretizam esses direitos (direito de acabar com a vida ou direito de dizer coisas desagradáveis).
A questão da eutanásia, quanto a mim, prende-se apenas com a dificuldade de definição dos limites e implementação de estruturas capazes de os identificar.
Uma perspectiva interessante sobre o tema é a que Hans Küng, cristão, pastor, teólogo, oferece no livro "Uma Boa Morte". Um outro testemunho que talvez valha a pena ler: https://observador.pt/especiais/a-parkinson-e-o-opus-dei-na-vida-de-paulo-teixeira-pinto/ .
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