De um escritor espera-se, antes de mais, que seja
corajoso o suficiente para não vogar ao sabor da corrente, perseguindo modas e
tendências com o intuito de conquistar a simpatia de alguns dos seus pares.
Espera-se que descubra dentro de si algo que o distinga dos demais, que insista
na descoberta sem renegar o encontro com a diversidade, com o outro. Ninguém
que escreva o faz em completo isolamento, a língua que pratica liga-o a uma
comunidade. Mas não lhe usurpa a identidade, não determina o caminho, conquanto
possa condicionar traços culturais por vezes facilitadores de generalizações abusivas.
Por exemplo, quando falamos de uma literatura portuguesa como se fosse possível
vislumbrar-lhe um padrão definidor. Esta mania académica das generalizações
raramente nos desvia da rotunda que leva da saudade à melancolia, varrendo para
as bermas tudo o que siga em contramão. Maldito fado.
Há dias, li num artigo de jornal que a poesia portuguesa
ameaça tornar-se enfadonha. É óbvio que o decreto pretendia sublinhar a
excepcionalidade dos nomes apontados como “lufadas de ar fresco”, mas ao ler
aquilo ocorreu-me de imediato quão enfadonha deverá realmente ser a poesia
portuguesa para quem passe a vida a ler autores oriundos das mesmas regiões estéticas
e expressivas. A homogeneidade é a maior inimiga da arte, chega-me até a
parecer que são incompatíveis. Do heterogéneo retiramos maior experiência dessa
liberdade que está na raiz de qualquer obra artística. É pois com tristeza que
constatamos tantas vezes não só uma tentativa de escamoteação dessa
homogeneidade, promovendo tudo quanto se assemelhe ao vigente, olvidando o
que se lhe oponha pela diferença, como também uma incompreensível resistência ao
diverso que, por não encaixar nos padrões de certo tempo, é relegado para o
plano da presunção debaixo de um toldo de desconfiança absoluta.
Da poesia de Hugo Milhanas Machado (n. 1984) não
desconfiamos nós, por há muito lhe havermos vislumbrado a singularidade que
escapa à rotunda. Vai pela berma? Que se lixe! Enquanto assim for, vai muito
bem. Tem tudo contra a maioria relativa que governa a sua época. Desde logo, a
opção por uma sintaxe estropiada. Um aspecto relevante deste Um Longo Tempo Nos
Pulos do Mar (Douda Correria, Fevereiro de 2018), pelo menos em comparação com
o que conhecíamos dos livros anteriores, é o facto de aqui os versos
elípticos terem cedido lugar a uma espécie de prosa que o não é bem assim.
Talvez o seja na aparência formal, mas no seu íntimo estas frases longas
pontuadas por vírgulas não deixam de ser versos, versos que são estrofes
inteiras, estrofes que dão parágrafos. E lá pelo meio damos tanto com esta limpidez:
«(…) só vinha dizer que daqui em diante é um circo de clareza que veio parar a
frase e nela amolecer textos e poemas que tu já conheces (…)». Como damos com esta
desbunda sintáctica: «(…) eu meto o gosto das madeiras duro para sempre nessas
praias de brutas batalhas e desforras e chego a gostar nos bons dias (…)».
Os temas mantêm-se em contramão: praia, férias,
acampamentos, mar, alegria, «(…) pequenas magias que depois por nós ficam a
mexer (…)», folas, guitarras, bicicletas, cantigas, o Verão, pistas de
atletismo, «(…) longas caminhadas praia fora (…)», barcos, vinho, joie de
vivre, «(…) a voz tão pegada à recordação nela emprestada (…)», isto é, tudo aquilo
que de algum modo se opõe à tal melancolia servida em genéricos ou à lenitiva
saudade, ainda que aqui a memória, as recordações, as lembranças, sejam raiz a
partir da qual também o texto se constrói. E constrói em retorno, como as
marés, repetindo na sua música «(…) o coração das férias (…)» quando Setembro chega
e inaugura o princípio de qualquer coisa que não pode ser dita como fim. Que
outro poeta português arriscaria colocar num texto seu uma referência a La La
Land? Não há enfado que vingue com os textos de Hugo Milhanas Machado, há um desafio
reiterado para encaixar algures o que não encaixa em lado nenhum. Apanhará o
barco quem quiser, como é óbvio, podendo até vir a queixar-se de ondulação
excessiva ou, como que por maldade, de mansas águas. Por aqui, olhamos para as
ilustrações de Patrícia Guimarães e sentimo-nos logo melhor do coração.
Começamos a ler os textos, e é como se embarcássemos «(…) no colo das ondas (…)».
Ficará sempre, como é óbvio, a nostalgia da alegria lembrada como corola de um
Verão onde colhemos o pólen que alimenta a esperança. Mas com a nostalgia de um sorriso podemos nós bem.
P.S.: deste livro diria ainda que tem uma prosa com métrica perfeita.
P.S.: deste livro diria ainda que tem uma prosa com métrica perfeita.
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