domingo, 13 de maio de 2018

UM POEMA DE JOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA


Jorge de Sena olhou para a cadeira de Van Gogh
E escreveu o que viu.
E viu, coisa mais estranha, uma cadeira,
um cachimbo pousado, uns restos de
tabaco e, ao fundo, o caixote com a assinatura Vincent.
Viu a pequenez do quarto, a porta, confirmou a indigência
do ocupante, lembrou-se da loucura já sabida e lida, e da
(mais impressionante do que qualquer pintura) orelha, real, cortada.
É estranho, mas foi isto o que ele viu: uma cadeira, um cachimbo, um quarto, uma
porta, um caixote.
Não viu, não leu a coisa em frente dos olhos: a cadeira bêbeda
a levantar voo no quarto bêbedo, as coisas a palpitar, a dançar
num mundo sem firmeza, não viu a alma esvair-se sob o ácido,
não viu o que Huxley viu sob o efeito do mescal, não viu o que se
vê desvairando um tanto que seja.
E, contudo, coisa mais que estranha, olhou para o quadro e escreveu o poema.


João Paulo Esteves da Silva, in Tâmaras, Douda Correria, Outubro de 2016, s/p

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