domingo, 24 de junho de 2018

20 - DO SILÊNCIO DOS RATOS

Eles ficam calados, ratos nos seus cantos, remordendo as armadilhas que a si mesmos montaram, incapazes de desabocanhar as tábuas de queijos, multicolores e, sem excepção, discretamente fedorentos, que tomaram por tábuas de salvação. Queijos pasteurizados, está bom de ver. Ao abrigo de micro-organismos patogénicos, sejam eles a generosidade, a abnegação, o amor ou a verdade. Não: nos seus cantos, onde até o sol é ensombrado e nunca assombra, não penetram tais maleitas e, por isso, nunca terão de escolher entre a alma e o coração, ambos frágeis construções feitas de filamentos de bolor. Decadente. Vivificante. Crescendo a olhos vistos. Fazendo de tudo a mesma coisa. Sem dissimulações. Digno como não pode ser o que bole pela calada. Os sinos sem badalo, não vá a gente acordar. As falinhas mansas com que conquistar sopeiras, baronesas e eleitores de ambas as freguesias. Eles ficam calados, à espera de que os esqueçamos enquanto operam a nossa remoção para parte incerta. Mas eu não me esqueço. E, apesar de tudo, continuo a acreditar que é possível trazê-los, de volta ou pela vez primeira, para o mundo dos vivos. O meu mundo. Iluminado por olhos doces e doridos e infinitamente luminosos. Os vossos, que me ledes de coração aberto.

Miguel Martins, in Lérias, Averno, Agosto de 2011, p. 31.

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