sexta-feira, 29 de junho de 2018

LAUREANO BARROS

(...) Na realidade, Laureano Barros era uma estranha personagem. Perfeccionista e rigoroso até ao exagero, não tolerava a incerteza nem os atrasos (era capaz de cortar relações de amizade por o terem feito esperar alguns minutos para além da hora combinada), nada lhe aborrecia mais que a desonestidade, por ele considerada uma traição aos seus princípios humanistas e sociais-democratas (não podendo, em boa verdade, dizer-se comunista — embora tena acolhido na morada da Foz o comunista na clandestinidade Rogério de Carvalho, e se tenha encontrado, a meio da noite, num pinhal de Vila do Conde, com a também comunista Cândida Ventura, porque se comprometera a entregar-lhe uns documentos secretos, Laureano afirmava-se socialista na sua versão social-democrata). (...) De certa maneira, Laureano Barros era um excêntrico: proibiu que lhe desejassem Feliz Natal ou lhe dessem os parabéns no dia de aniversário (e não aceitava presentes); nunca teve carta de condução, mas tinha um taxista às ordens, com quem dava grandes passeios pelo Gerês; costumava almoçar no luxuoso restaurante Elevador, no Bom Jesus de Braga, aonde frequentemente levava os jornaleiros da quinta (incluindo o lenhador José Corga, conhecido pela proeza de comer três quilos de batatas à refeição), o que inspirava grande consideração aos olhos dos empregados; comprou as dez primeiras edições da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, um luxo extravagante; obrigou Arnaldo Sousa, amigo e director do jornal da terra, O Povo da Barca, a prometer que não publicaria qualquer notícia sobre a sua morte; e manifestou a vontade de ser sepultado nos terrenos da quinta, sem caixão, sem discursos e sem cerimónia religiosa. (...) Laureano Barros procurou incutir nos filhos o gosto pelos livros, a ponto tal que chegou a comprar mais de um exemplar da mesma obra para evitar futuros problemas de partilhas. Cedo, porém, teve de lutar contra a evidência de que nenhum dos três filhos iria preservar inteira a biblioteca. (...)


João Pedro George, na Introdução a O Grilo na Varanda — Luiz Pacheco para Laureano Barros (Correspondência, 1966-2011), Tinta-da-China, Junho de 2017, pp. 23-39.

1 comentário:

Gabriel Pedro disse...

Meu caro,

Isso é sacadíssimo daqui:

https://www.publico.pt/2009/07/05/culturaipsilon/noticia/laureano-barros-o-homem-que-fugiu-com-uma-biblioteca-1390333

Um abraço