quinta-feira, 14 de junho de 2018

UM POEMA DE JOSÉ LUIS GARCÍA MARTÍN


RETRATO DE UM ESCRITOR DE CERTA IDADE

Dou voltas pelo centro, levanto um cheque,
compro uma coleira de cão, bebidas.
Está um belo dia de verão,
muitos rostos amigos me sorriem,
bebo um copo com um conhecido
que me conta uma história que não entendo
de todo e animo-o e sou feliz.
No rádio do carro passam Mozart.
No fim de contas essa puta velha,
a vida, não se portou mal:
vivo do que escrevo, nunca aturo
maus humores de ninguém, durmo bem
quase todas as noites, bebo muito
apenas um dia por semana, vejo
pouco os meus filhos, é verdade, a mãe deles
esconde-os por debaixo da saia,
um sítio a que prefiro não voltar,
mas não os esqueço nem me esquecem.
Era esta a vida que eu sonhava
nos verões da minha adolescência
quando olhava absorto para o céu
e uma fugaz estrela se soltava?
Nem sei nem me importa. Para a noite
talvez solicite companhia,
ainda que prefira ficar só
e beber e beber. Depois, amanhã,
dormirei como um morto o dia todo.
No rádio do carro passam Mozart,
o céu está mais azul que de costume,
não preciso de nada que não possa
pagar e quase não me dão desgostos
o coração, o fígado e os cães.
Em breve vou fazer cinquenta anos.


José Luis García Martín (n. Aldeanueva del Camino, Cáceres, Espanha, 1950), in Trípticos Espanhóis — 1.º, trad, Joaquim Manuel Magalhães, Relógio D'Água, Maio de 1998, pp. 55-57.

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