era uma cidade escura e infernal
onde a ansiedade existia horizontalmente
como um condomínio
impossível de fugir
de repente abria-se uma janela absoluta
como um sonho dentro do sonho
e tu aparecias no escuro dentro dela
avançavas como o último cigarro
de um condenado destronando
as ruínas da incerteza
até desaparecer
sonhei que escapava
na direcção da tua boca
mas a manhã fazia já uma âncora
dos meus pés
quando acordei tinhas deixado
um lugar vago dentro de mim
e a memória tão
esparsa e perene é agora
de uma amplitude inescapável solidificada
durante o processo da tua evaporação
a melhor prisão que alguma vez construí
para não acordar completamente
(e assim te conseguir libertar)
se te perguntarem podes dizer agora
que sei como o fim se prolonga
antes e depois de acontecer
agora que o dia se desmorona
ninguém me há-de salvar tão cedo
nunca gostei de ser invadido
pelas manhãs e tarde será
sempre
um bom modo
de acabar
José Anjos (n. 1978), in Somos Contemporâneos do Impossível (Abysmo, Dezembro de 2017). Publicou Manual de Instruções Para Desaparecer (Abysmo,
Abril de 2015) e Somos Contemporâneos do Impossível (Abysmo, Dezembro de 2017),
tendo ficado clara neste último a filiação surrealista. As duas variações em
Daniel Faria relevam um diálogo com a contemporaneidade que não passa pela
reprodução de modelos consensuais, preferindo-se arriscar o poema num lugar de
difícil acesso hermenêutico. Ainda que o sentido pareça esquivo, a organização
dos livros indica alguma preocupação com aquilo a que podemos dar o nome de
conjuntos temáticos correndo o sério risco de trair a “liberdade livre” de que
estes poemas se reclamam herdeiros. A infância, a natureza do poema, o amor, a
morte, são temas abordados invariavelmente de um modo conotativo, isto é,
recorrendo a uma linguagem imagética povoada de memórias estilhaçadas, derivas
imaginárias, observações fantasiosas. Poeta com uma forte ligação aos novos
modos de dizer poesia, José Anjos talvez possa ser incluído num grupo algo
restrito de poetas que escreve para ser dito. A provocação está em que neste
dizer não se intenta a leitura, mantendo abertos os caminhos do sentido com
sugestões rítmicas marcadas por disposições vocabulares inesperadas, espaçamentos
singulares, rigorosas quebras de verso, uma multiplicidade de possibilidades sintácticas
que apenas a respiração do leitor determinará.
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