terça-feira, 24 de julho de 2018

MEMÓRIA DE UM EXOESQUELETO




era uma cidade escura e infernal
onde a ansiedade existia horizontalmente
como um condomínio
impossível de fugir

de repente abria-se uma janela absoluta
como um sonho dentro do sonho
e tu aparecias no escuro dentro dela
avançavas como o último cigarro
de um condenado destronando
as ruínas da incerteza
até desaparecer

sonhei que escapava
na direcção da tua boca
mas a manhã fazia já uma âncora
dos meus pés

quando acordei tinhas deixado
um lugar vago dentro de mim
e a memória  tão esparsa  e perene  é agora
de uma amplitude inescapável  solidificada
durante o processo da tua evaporação
a melhor prisão que alguma vez construí
para não acordar completamente
(e assim te conseguir libertar)

se te perguntarem podes dizer agora
que sei como o fim se prolonga
antes e depois de acontecer
agora que o dia se desmorona
ninguém me há-de salvar tão cedo
nunca gostei de ser invadido
pelas manhãs e tarde será
sempre

um bom modo
de acabar


José Anjos (n. 1978), in Somos Contemporâneos do Impossível (Abysmo, Dezembro de 2017). Publicou Manual de Instruções Para Desaparecer (Abysmo, Abril de 2015) e Somos Contemporâneos do Impossível (Abysmo, Dezembro de 2017), tendo ficado clara neste último a filiação surrealista. As duas variações em Daniel Faria relevam um diálogo com a contemporaneidade que não passa pela reprodução de modelos consensuais, preferindo-se arriscar o poema num lugar de difícil acesso hermenêutico. Ainda que o sentido pareça esquivo, a organização dos livros indica alguma preocupação com aquilo a que podemos dar o nome de conjuntos temáticos correndo o sério risco de trair a “liberdade livre” de que estes poemas se reclamam herdeiros. A infância, a natureza do poema, o amor, a morte, são temas abordados invariavelmente de um modo conotativo, isto é, recorrendo a uma linguagem imagética povoada de memórias estilhaçadas, derivas imaginárias, observações fantasiosas. Poeta com uma forte ligação aos novos modos de dizer poesia, José Anjos talvez possa ser incluído num grupo algo restrito de poetas que escreve para ser dito. A provocação está em que neste dizer não se intenta a leitura, mantendo abertos os caminhos do sentido com sugestões rítmicas marcadas por disposições vocabulares inesperadas, espaçamentos singulares, rigorosas quebras de verso, uma multiplicidade de possibilidades sintácticas que apenas a respiração do leitor determinará.

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