Margarida Vale de Gato (n. 1973) publicou Mulher ao Mar
(Mariposa Azual, Abril de 2010) há 8 anos, sendo que desde então o livro tem
vindo a ser revisto em reedições ulteriores ligeiramente alteradas no título:
Mulher ao Mar Retorna (Mariposa Azual, Dezembro de 2013) e, mais recentemente,
Mulher ao Mar e Grinalda (Mariposa Azual, Março de 2018). Uma leitura comparada
das três edições permitirá constatar a supressão de alguns poemas, arrumações ligeiramente
distintas dos que vêm resistindo ao jugo da autora, acrescentos consideráveis.
Mulher ao Mar e Grinalda inicia com “uma grinalda” de 15 sonetos
novos. Por grinalda entendamos aqui selecta, embora a confusão com diadema não
ficasse mal a um conjunto que pelo título “Mais do Mesmo” ironiza certa ideia
de excepcionalidade, concordante com uma poesia aureolada que não é, de todo,
onde esta se inscreve. A opção pelo soneto, assim como por outras formas ditas
clássicas, acompanha a poesia de Margarida Vale de Gato desde o início. Mais
timidamente em Mulher ao Mar, em poemas tais como Declaração de Intenções, Cat
People, Émulos, Senhora do Ó, Reparação; de um modo disruptivo, posteriormente,
em poemas como Se Sinto Isto Aqui Chiar Cá Dentro, Aniversário (II) ou
Condições Mínimas. Não está em causa apenas a consciência da tradição que se
exige a todos os poetas, mas antes um diálogo profícuo com essa mesma tradição.
Resulta esse diálogo numa interpelação da norma, o que é bem diferente de um
respeito reverencial pela convenção.
Os 15 sonetos que inauguram Mulher ao Mar e Grinalda são
como que um único poema em concertina: o último verso do primeiro soneto surge
como primeiro verso do segundo e assim sucessivamente, com ligeiras modificações
sintácticas a imprimirem novas possibilidades de sentido aos mesmos vocábulos.
Outra característica desta poesia é a sua inclinação experimental no domínio da
forma e dos jogos fonéticos, assim como a capacidade que mostra em subverter
temas e adulterar tiques a esses temas associados. Ao poema de amor clássico prefere
Margarida Vale de Gato o poema de ex-amor, deixando ao leitor indícios da sua real
intenção: «crio teu perfil / e faço — para não te deixar ir — /
em serpentina todos estes versos // com regras que de cor sei, corrompo / e
busco língua nova que destape / a tumba hetero-sapiens do discurso» (p. 17).
Esta busca de uma língua nova não arroga conquistas, simplesmente eleva o grau
de exigência, denota uma coragem incomum na nossa época.
O erotismo que amiúde emerge destes versos já não é o de
um conteúdo exclusivamente declarativo. Os corpos, a carne, os coitos, os
líquidos, surdem de um jogo inerente à escrita do poema. Como se o próprio
poema fosse corpo, corpo rítmico, corpo linguagem, movimentando-se na direcção
do leitor. A condição feminina aludida convoca, por vezes, nomes próprios que podem ser entendidos enquanto paradigmas dessa
condição (Sylvia Plath, Anna Karenina, Christina Rossetti, Emily Dickinson,
Virginia Woolf, Medeia, Maya Deren…), nomes que nos deslocam para singular universo referencial da
autora, demarcam o seu território doméstico (leia-se o poema Vida em Comum),
aludem à mulher mãe, à mulher filha, à mulher amante, à mulher escritora, sem nos
fecharem numa redoma confessional ou meramente lamuriosa. Antes pelo contrário,
há nestes poemas uma urgência de deflagração que o trabalho linguístico tende a
retardar ou, se preferirem, a conter. O lado emotivo dos versos é detectável, visível,
mas nunca põe em causa a estrutura formal do poema. Note-se como nesse exercício
de inclinação concretista intitulado Ribanceira da Vamba a forma se sobrepõe a
uma lenda de amores proibidos, sem que deixe de servir o propósito de denúncia de
uma condição feminina proscrita e amaldiçoada.
Por fim, julgo também ser possível falar de uma
ambiguidade identitária detectável nos poemas de Margarida Vale de Gato. No
poema intitulado Texto de Apresentação, auto-retrato que encontrámos pela
primeira vez em Mulher ao Mar Retorna, a primeira estrofe é clara: «É-me
indiferente: poeta, poetisa / dependerá do ritmo ou da medida — /
prefiro tradutora, mas admito / que por vezes não dobro e sou narcisa» (p. 27).
Não quero aqui ressalvar a subjugação do género à condição formal do ritmo, mas
sim a preferência por “tradutora” na eventualidade de uma identificação.
Indiferente que seja poeta ou poetisa, prefere tradutora. Porquê? De facto, o
labor da tradução é uma das actividades há muito desenvolvidas por Margarida
Vale de Gato. Traduzir é trair, é interpretar, é estar em relação com. Na sua poesia isso reflecte-se num bilinguismo que não enjeita de
todo a influência anglo-saxónica, patente nos poemas Virginia Woolf,
Transatlântico, Bilinguismo, mas também no mais recente Monterey, California.
Talvez mais assertivo que os restantes, é com ele que termino, não por julgá-lo
representativo do todo, mas por me parecerem nele claras diversas das pistas de
leitura que aqui tentei deixar:
MONTEREY, CALIFORNIA
Cyndi Lauper na MTV cantava que as miúdas
queriam mas era curtir e todos menos eu
eram como ela ou o Michael Jackson
broads afro-americanas com jeans da Guess
e unhas e cabelos em pé — densos
espessos eretos — meninas
da Martin Luther King Middle
escondiam garrafas nos lockers
e tinham mães incrivelmente desmazeladas.
De certeza que há um year-book
e como ainda hoje me embaraçaria dar
com a portuguesa nerd malfeita
de púbere idade giggling na tarde
podre
americana. I pledge allegiance
to the
flag of the United States of America.
Estávamos em 85/6, a central vertia em Chernobyl
e as tropas de Ronald Reagan desfilavam para a CNN.
Pedia-me a stôra de Social Studies
que apontasse no mapa de onde eu era.
Também me fez pesquisar Margaret Mead.
Eu com doze anos a minha inépcia
e indecidível existência étnica.
Acabaram por me arrolar com os mexicanos
que nesse ano se orgulhavam dos seus pais
por causa do Campeonato do Mundo.
Apesar de mal planarem na minha língua
deixavam-me por ali cheirar churros e ganzas
e via Portugal perder na TV.
Umas quantas habilidades que guardei:
dactilografar sem ver, sonhar com sotaque,
imitar as focas no Fisherman’s Wharf.
Margarida Vale de Gato, in Mulher ao Mar e Grinalda,
Mariposa Azual, Março de 2018, pp. 32-33.
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