Por vezes, foram os críticos mais velhos que surpreenderam os mais novos, revelando-lhes obras de artistas que o mercado desprezara e que correspondiam porém aos anseios expressivos das recentes gerações.
Aprofundaram-se as técnicas tradicionais e surgiram novas modalidades, nomeadamente a fotografia intervencionada pela pintura.
Neste género híbrido um dos casos mais notáveis é Helena Almeida (n. 1934), que repurifica a fotopintura, pondo-a ao serviço da meditação sobre a representação-da-representação, de características pós-pop. A fotografia apropria-se da pintura; a pintura apropria-se da fotografia. As duas modalidades da arte da representação visual esclarecem-se mutuamente, trocando as suas funções imagéticas e os seus suportes físicos.
Em 1976, a própria pintora declarou: «Nunca fiz as pazes com a tela, papel ou suporte. Creio que o que me fez sair do suporte, através de volumes, fios e de muitas outras formas, foi sempre uma grande insatisfação em relação aos problemas do espaço. Quer enfrentando-os, quer negando-os, eles têm sido a verdadeira constante de todos os meus trabalhos. Creio estar perto da verdade, se disser que pinto a pintura e desenho o desenho. Não se expõem, mas expõem, podendo assim denunciar com mais ênfase o carácter ideológico da arte, aceitando-o para melhor o negar. / Agora e através destas fotografias com desenhos, a mesma negação é feita de várias maneiras. / O que aqui exponho não são as impressões ou marcas de "artista", mas sim a representação da renúncia a essa espécie de registos. / Mas essa renúncia é reencontrar outro espaço e cair noutra armadilha poética. Pois, ao colocar-me como "artista" no espaço real e ao espectador no espaço virtual, ele troca de lugar com o suporte, tornando-se ele próprio espaço imaginário. / Ser uma irrealidade. Ser um apelo à possessão de alegrias íntimas. Ser o repouso desenhado. Viver o interior quente duma linha curva. Reencontrar a paz num desenho habitado» (Helena Almeida, 1976).
Serve de exemplo Fenda Secreta (1981), de sua autoria, fotografia sobre pano, com três metros de altura. Numa sua imagem fotográfica obtida por Artur Rosa, a pintora alterou com tinta preta a silhueta do corpo e sugeriu um corte vertical, à direita. Nesse simulacro, a pintora parece atravessar o suporte da imagem.
A relação da autora com os materiais artísticos cria «curtos-circuitos» mentais, não apenas divertidos, mas também instauradores de uma auto-reflexividade da obra artística, através de processos puramente visuais. O conceptualismo original de Helena Almeida não contraria o lirismo. O surpreendente momento de modificação aparente do corpo, ao alterar a primeira fotografia, é recriado na ondulação do pano, onde a imagem foi amplificada para o tamanho natural.
Rui Mário Gonçalves, in A Arte Portuguesa do Século XX, Círculo de Leitores, Dezembro de 1998, pp. 103-105.
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