O argumento da idade. É mais ou menos esse o argumento de
Ricardo António Alves: «Dizer que houve censura das fotografias do Mapplethorpe em Serralves, significa que não sabe o que é (e foi) a censura.» Então o que é a censura? O que foi? Há várias formas de censura,
adaptam-se aos tempos e fazem-se valer de formas diversas sempre com o mesmo
intuito: proibir. Ora, eu estou proibido de ver a totalidade das obras de Mapplethorpe
expostas em Serralves na companhia das minhas filhas. Isto é um facto, independentemente
do que quer que consideremos acerca da censura de ontem e da censura de hoje.
Assumo todas as responsabilidades, enquanto pai, quanto aos efeitos
perniciosos, malignos, perturbadores, desviantes, doentios, que tais imagens
possam provocar em duas jovens a meu cargo. Nunca fugi às minhas
responsabilidades parentais. Se bem sei, condicionamentos e restrições de idade
não estão previstas na lei para exposições de arte. Logo, aplicá-las numa
exposição de arte é uma forma de censura. Mas mesmo que estivessem consagradas
na lei, isso não deixaria de ser censura. A censura já foi lei. Agora não é, ainda
que prevaleçam certas formas de censura. Umas mais subtis que outras, umas mais
evidentes que outras. Mas censura. Daí que devamos estar muito atentos a
estes fenómenos, até pelo que arrastam de comentários numa rede onde a censura
é menos notada. Na net, chamemos-lhe assim, toda a gente pode dizer tudo, toda a gente pode ver
tudo. Inclusivé as fotografias de Mapplethorpe. É como se não houvesse censura. Mas há. Chama-se descontextualização. A
descontextualização promove a estupidez, a estupidez alicerça a homofobia, a
xenofobia, o racismo, o machismo, o etnocentrismo, isto é, tudo o que há de mais
escabroso e censurável na humanidade. A violência aludida nas fotografias de Mapplethorpe
é questionável, como toda a arte. Esta imagem de Pieter Hugo é violentíssima.
Ninguém proibiu as minhas filhas de a verem numa exposição na Gulbenkian.
Viram-na na companhia do pai, que as preveniu para o choque, contextualizou,
falou, discutindo-se posteriormente o que havia a discutir. O que sempre há a
discutir quando uma exposição é boa. As imagens de Mapplethorpe podem ser consideradas igualmente violentas, na medida em que exibem, algumas delas, práticas sexuais mais radicais. São imagens que estão para a fotografia como outrora Sade esteve
para a Filosofia. O que tem levado à sua proibição, ou a certas restrições na
sua exposição, é a questão sexual. Tratasse-se de uma decapitação e ninguém
questionaria a problemática dos condicionalismos. Posso dizer que uma das
exposições que mais me perturbou até hoje era sobre tortura medieval. Há quem
visite Auschwitz-Birkenau e saia de lá com vontade de tomar uma caixa de
antidepressivos. Qual o limite de idade para se visitar um ex-campo de
concentração? É óbvio que haverá sempre, como diz o Ricardo, quem seja
conservador, moralista, preconceituoso. E quem o seja menos ou o não seja de
todo. Porquê prevalecer a vontade de uns sobre a de outros? Para mim, a
resposta é simples: deve prevalecer a vontade daqueles que desbravem terreno
para a liberdade, para a verdade, para a consciencialização dos problemas, para
a contextualização, para o debate, para a polémica. Restringir o campo crítico
é um erro em sociedades livres, é como colocar véus em estátuas de nus para não
ferir a susceptibilidade de imãs ou de bispos. É como andar de burca, só que disfarçadamente, aos bocadinhos. A velha discussão sobre fronteiras
que separam arte de pornografia parece-me ultrapassada, parecia-me
ultrapassada. Eu não percebo de todo que certas fotografias, certos cartoons,
certos quadros, certas peças de arte, não sejam aconselháveis a crianças, desde
que acompanhadas de adultos que por elas se responsabilizem. Mais difícil se me
torna aceitar que certos adultos estejam minimamente preparados para falar do
que quer que seja com uma criança, muito menos sobre temáticas onde a genitália
se utiliza enquanto adereço artístico. Problema desses adultos. Há sinais
alarmantes de há algum tempo a esta parte de um puritanismo crescente na
sociedade ocidental, acompanhado, claro está, do populismo que faz sempre confundir
moral com proibição. Nada há de mais imoral do que a proibição de uma manifestação
artística, sob pretexto de que não é arte ou é ofensa ou é heresia ou é
urinol. Daí que a conclusão seja pouco cautelosa: «Censura? Nem por isso, apenas uma histeria grotesca de activismo kitsch e excitação de umas cabecinhas com uma razoável massa de esterco encefálico.» Quererá o
Ricardo ser lembrado de variadíssimos exemplos recentes de "censurazinha" moralista?
5 comentários:
Pergunta de pai para pai: O que significa, ou em que se concretiza, "assumir as responsabilidades quanto aos efeitos provocados em"?
Henrique, respondi-lhe lá, antes de ler o que escreveu aqui.
Aí argumento por que razão não se pode chamar censura ao que sucedeu, mesmo que ainda não saibamos (eu ainda não) sei o que verdadeiramente fez cada interveniente, uma vez que eles se contradizem. Como não conheço nenhum pessoalmente, não me pronuncio. No entanto, não sou indiferente ao que disseram Isabel Pires de Lima e Pacheco Pereira.
Você pode dizer que assume a responsabilidade da sua parentalidade e que contextualiza o que se propõe mostrar à suas filhas, está no seu direito de ter essa opinião, embora a parentalidade não dê direitos absolutos sobre os filhos, como se sabe.
Não sendo médico nem psicólogo, atrevo-me a duvidar que algumas daquelas imagens não possam ser perturbadoras para muitas crianças. Mas se você se arroga essas competências, outros haverá que as não têm e não devem ser apanhados desprevenidos quando vão ver uma exposição na companhia dos filhos -- e não são só os filhos que estão em causa: como você fala do sexo -- e eu acho que a questão vai muito para além do sexo -- eu tenho todo o direito de ver aquelas imagens, se o quiser, sòzinho, sem ser apanhado na curva e à traição pelo curador -- horrível palavra . Imagine que eu sou um desses adultos que não está preparado para falar minimamente com uma criança sobre o que quer que seja. "Problema desses adultos", diz você, e fica o assunto resolvido. Pois não fica, até porque a criança seria deixada à sua sorte, e segundo depreendo, você não defende tal.
Quanto ao resto, se você se deu ao trabalho de passar os olhos pela post-scriptum da posta, verificará que a minha posição em relação às crianças é a mesma, trate-se de sexualidade violenta ou do racismo no «Tintin no Congo»...
Se um menor for à minha livraria comprar um livro com as imagens de Mapplethorpe, devo vendê-lo? Deverá a venda do livro ser condicionada a maiores de 18 anos?
Se sim, parece-me que entramos num território infindável de restrições que configuram formas de censura.
As imagens estão acessíveis, como podemos constatar com um mero clique. Logo, é de uma hipocrisia monumental circunscrever a sua exposição numa galeria. Não faz sentido.
Ivo: quer dizer exactamente o mesmo que «us progenitores são responsáveis pelo bem-estar, educação e bens dos filhos. Além disso, têm o direito de os representar legalmente.» Assumo essas responsabilidades. Algo que corra mal, julguem-me por isso.
Toda a situação em redor da exposição Mapplethorpe cheira de certeza pior do que o cabo de chicote que o próprio Mapplethorpe enfiou no cu. Há apenas uma única coisa boa a retirar de tudo isto: este género de situação faz sair da toca as mentes mais reaccionárias e ultramontanas deste país. E isso, a bem da verdade, é bom. A malta pode passear de crachá democrata na lapela, defender a liberdade de expressão e a liberdade de escolha, reivindicar mais cultura e etc e tal. Mas, depois, a democracia só se aplica a eles, bem como a liberdade de expressão, de escolha e a cultura. Ainda bem que Mapplethorpe regressou.
A democracia convive bem com casas pias e padres em fuga e violência doméstica e assédio sexual, moral, etc... mas convive mal com fotografias que encenem práticas sexuais. Neste país, tudo o que meta sexo e igreja há-de ser sempre controverso. Já não se lembram disto?
https://www.publico.pt/2009/02/23/sociedade/noticia/psp-apreende-livros-por-considerar-pornografica-capa-com-quadro-de-courbet-1366440
Abram os olhos, pá.
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