Não sei ao certo quando vi pela primeira vez Paris, Texas
(1984), o filme de Wim Wenders. Mas tenho a certeza de que cheguei ao filme
através da banda sonora de Ry Cooder. Agora que penso no assunto talvez nunca
uma guitarra me tenha aberto portas para tanta coisa boa, entre as quais o
primeiro contacto com o nome de Sam Shepard (1943-2017) foi definitivamente uma
delas. Argumentista de Paris, Texas, Shepard assinou alguns livros de histórias
que entraram directamente para a estante que reservo aos imprescindíveis na
minha biblioteca pessoal. Crónicas Americanas (Difel,
2002) é definitivamente um deles.
Julgo que a última vez que me cruzei com o nome de Sam
Shepard foi no magnífico western de Andrew Dominik, The Assassination of Jesse
James by the Coward Robert Ford (2007). Actor, dramaturgo, argumentista,
ficcionista, poeta, realizador (são dele Far North, de 1988, e Silent Tongue,
de 1993), o autor de Atravessando o Paraíso (Difel, 1997) não quis deixar este
mundo sem lhe oferecer um derradeiro testemunho das últimas horas. Espião Na Primeira
Pessoa (Quetzal, Agosto de 2018) é isso mesmo. Vítima de Esclerose Lateral
Amiotrófica, o autor trabalhou no livro até ao último suspiro. À medida que foi
perdendo autonomia, socorreu-se da família e da amiga Patti Smith para
finalizar o manuscrito. A edição final aí está, numa belíssima edição com
tradução de Salvato Telles de Menezes.
Em capítulos muito curtos, o espião desta narrativa olha
para dentro como se olhasse para o outro lado da rua. Vê um homem sentado numa
cadeira de baloiço, «limita-se a baloiçar o dia inteiro», e questiona-se sobre
quem será esse homem, que fará ele naquela cadeira o dia inteiro. O jogo sugere
uma projecção de identidades, podendo aqui a cadeira de baloiço ter exactamente
o mesmo efeito que reconhecemos na peça Rockaby (1981), de Samuel Beckett, o
efeito hipnótico e repetitivo da passagem do tempo que resta, a caminho de um
vazio —
«Aliás, já estou vazio. Do género de uma concha» (p. 86) —, tendendo
para a morte de que são símbolo por excelência os corvos, «passarões maus»,
aludidos logo no final do primeiro capítulo.
A consciência da aproximação da morte é, pois, motivo
para uma viagem testemunhal pelos labirintos da memória. O que o espião espia
não lhe é exterior, mas sim interior. Ele espia o passado, a memória, a
primeira pessoa, ele observa os «Raios X. Imagens fantasmáticas» de um memória
urgente, reconstruída em fogachos, oferecida aos que ficam como uma espécie de
testamento sobre as origens, sobre o que é possível saber/dizer/revelar acerca
das origens. «Há alturas em que não posso deixar de pensar no passado. Sei que
o presente é o lugar para se estar. Foi sempre o lugar para se estar. Sei que
me foi recomendado por pessoas muito sensatas que permanecesse no presente o
mais possível, mas o passado apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem
sempre em partes» (p. 58).
Comoventes manifestações de desamparo, num texto que é
todo ele uma comovente manifestação, como que levam a um distanciamento do ser face
a si próprio ao mesmo tempo que assistimos a alguém falando de si para si. Projectando-se
num outro aparente, o ser como que deixa de se reconhecer. A doença é esse
processo a partir do qual o ser deixa de se reconhecer a si mesmo, olha-se e vê
outra coisa, algo diferente da ideia que tinha de si, a doença é o ser a
perder-se. Como pode ele reencontrar-se? Como pode ele voltar a se reconhecer
como quando se via ao espelho?
Partindo em busca de si mesmo nas memórias que retém, nos
resquícios de épocas passadas onde perduram lugares, pessoas, sons, a família,
moradas, cheiros, o ser afasta-se da sua fragilizada condição existencial e
como que recupera parte da autonomia perdida. O paradoxo está em que sendo um
exercício de abstracção, este acto de espionagem é altamente físico, material,
corporal, pois processa-se no corpo a partir de um acto de resistência à degeneração
do corpo. «Tudo está na minha cabeça», diz. Mas é como se dissesse «tudo está no
meu corpo». A cadeira de baloiço é também esse lugar estático em movimento que
simboliza a relação do ser com a memória, a noção de uma vida confinada a um
período temporal.
Espião na Primeira Pessoa é um daqueles livros capazes de nos
colocar, com extrema simplicidade, no lugar limite da consciência, não propriamente como um exame mas mais
como um exercício derradeiro de compreensão da vida. Do sentido da vida. E
desse sentido guardamos nós um horizonte porventura melancólico, mas ao mesmo
tempo apaziguador. Afinal pouco mais podemos exigir à vida do que um legado de
experiências mais ou menos memoráveis. Que no momento derradeiro, ao olharmos
para dentro, não vislumbremos apenas vácuo, é sinal de sucesso. Talvez o maior
que possamos almejar. E ainda que a palavra sucesso pouco sentido faça no
último texto de Sam Shepard, é ela que ecoa dentro do fracasso óbvio que a
morte determina. Como água no meio do deserto.
2 comentários:
Hummm, fiquei com vontade de ler.
Bom.
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