sexta-feira, 12 de outubro de 2018

ESPIÃO NA PRIMEIRA PESSOA


Não sei ao certo quando vi pela primeira vez Paris, Texas (1984), o filme de Wim Wenders. Mas tenho a certeza de que cheguei ao filme através da banda sonora de Ry Cooder. Agora que penso no assunto talvez nunca uma guitarra me tenha aberto portas para tanta coisa boa, entre as quais o primeiro contacto com o nome de Sam Shepard (1943-2017) foi definitivamente uma delas. Argumentista de Paris, Texas, Shepard assinou alguns livros de histórias que entraram directamente para a estante que reservo aos imprescindíveis na minha biblioteca pessoal. Crónicas Americanas (Difel, 2002) é definitivamente um deles.
Julgo que a última vez que me cruzei com o nome de Sam Shepard foi no magnífico western de Andrew Dominik, The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford (2007). Actor, dramaturgo, argumentista, ficcionista, poeta, realizador (são dele Far North, de 1988, e Silent Tongue, de 1993), o autor de Atravessando o Paraíso (Difel, 1997) não quis deixar este mundo sem lhe oferecer um derradeiro testemunho das últimas horas. Espião Na Primeira Pessoa (Quetzal, Agosto de 2018) é isso mesmo. Vítima de Esclerose Lateral Amiotrófica, o autor trabalhou no livro até ao último suspiro. À medida que foi perdendo autonomia, socorreu-se da família e da amiga Patti Smith para finalizar o manuscrito. A edição final aí está, numa belíssima edição com tradução de Salvato Telles de Menezes.
Em capítulos muito curtos, o espião desta narrativa olha para dentro como se olhasse para o outro lado da rua. Vê um homem sentado numa cadeira de baloiço, «limita-se a baloiçar o dia inteiro», e questiona-se sobre quem será esse homem, que fará ele naquela cadeira o dia inteiro. O jogo sugere uma projecção de identidades, podendo aqui a cadeira de baloiço ter exactamente o mesmo efeito que reconhecemos na peça Rockaby (1981), de Samuel Beckett, o efeito hipnótico e repetitivo da passagem do tempo que resta, a caminho de um vazio «Aliás, já estou vazio. Do género de uma concha» (p. 86) , tendendo para a morte de que são símbolo por excelência os corvos, «passarões maus», aludidos logo no final do primeiro capítulo.
A consciência da aproximação da morte é, pois, motivo para uma viagem testemunhal pelos labirintos da memória. O que o espião espia não lhe é exterior, mas sim interior. Ele espia o passado, a memória, a primeira pessoa, ele observa os «Raios X. Imagens fantasmáticas» de um memória urgente, reconstruída em fogachos, oferecida aos que ficam como uma espécie de testamento sobre as origens, sobre o que é possível saber/dizer/revelar acerca das origens. «Há alturas em que não posso deixar de pensar no passado. Sei que o presente é o lugar para se estar. Foi sempre o lugar para se estar. Sei que me foi recomendado por pessoas muito sensatas que permanecesse no presente o mais possível, mas o passado apresenta-se. O passado não vem como um todo. Vem sempre em partes» (p. 58).
Comoventes manifestações de desamparo, num texto que é todo ele uma comovente manifestação, como que levam a um distanciamento do ser face a si próprio ao mesmo tempo que assistimos a alguém falando de si para si. Projectando-se num outro aparente, o ser como que deixa de se reconhecer. A doença é esse processo a partir do qual o ser deixa de se reconhecer a si mesmo, olha-se e vê outra coisa, algo diferente da ideia que tinha de si, a doença é o ser a perder-se. Como pode ele reencontrar-se? Como pode ele voltar a se reconhecer como quando se via ao espelho?
Partindo em busca de si mesmo nas memórias que retém, nos resquícios de épocas passadas onde perduram lugares, pessoas, sons, a família, moradas, cheiros, o ser afasta-se da sua fragilizada condição existencial e como que recupera parte da autonomia perdida. O paradoxo está em que sendo um exercício de abstracção, este acto de espionagem é altamente físico, material, corporal, pois processa-se no corpo a partir de um acto de resistência à degeneração do corpo. «Tudo está na minha cabeça», diz. Mas é como se dissesse «tudo está no meu corpo». A cadeira de baloiço é também esse lugar estático em movimento que simboliza a relação do ser com a memória, a noção de uma vida confinada a um período temporal.
Espião na Primeira Pessoa é um daqueles livros capazes de nos colocar, com extrema simplicidade, no lugar limite da consciência, não propriamente como um exame mas mais como um exercício derradeiro de compreensão da vida. Do sentido da vida. E desse sentido guardamos nós um horizonte porventura melancólico, mas ao mesmo tempo apaziguador. Afinal pouco mais podemos exigir à vida do que um legado de experiências mais ou menos memoráveis. Que no momento derradeiro, ao olharmos para dentro, não vislumbremos apenas vácuo, é sinal de sucesso. Talvez o maior que possamos almejar. E ainda que a palavra sucesso pouco sentido faça no último texto de Sam Shepard, é ela que ecoa dentro do fracasso óbvio que a morte determina. Como água no meio do deserto.

2 comentários:

maria disse...

Hummm, fiquei com vontade de ler.

hmbf disse...

Bom.