Que o mundo é um lugar estranho, há muito sabemos. Mas
que a época em que vivemos seja essencialmente diferente das anteriores, é
matéria discutível. Sob o manto flutuante dos factos permanece intacto o ácido desoxirribonucleico
dos homens, constatação que leva a eternas e infindáveis dúvidas acerca dos ínvios
caminhos da evolução e do progresso. Para onde tendemos? Uns dirão que para o
céu, outros garantirão que para o inferno. Certo é tendermos para algo
diferente do que somos, pelo menos em aparência. É da substância do tempo que
assim seja. Em essência mantemo-nos selvagens mais ou menos adestrados pelas
ferramentas da civilização. Quando menos esperamos, damos por nós brutos que
nem nos imaginamos noutras eras. Se as fogueiras medievais parecem ter sido há
muito, o holocausto foi ontem. E o Daesh anda por aí usufruindo das mesmíssimas
ferramentas para recrutar que os fascistas emergentes. Em tempos, apedrejámos
pessoas na rua. Agora damos cabo delas na praça pública com palavras e insultos
que pesam tanto quanto pedras. Pode parecer estranho tal intróito para a
leitura de um livro com gatinhos na capa, mas a culpa é do autor. Gatos no
Quintal é o livro de estreia, em matéria de poesia, de José Pedro Moreira (n.
1983). Se lhe atribuo a culpa do intróito não é para assacar responsabilidades.
No limite, a culpa de sermos bestas é de toda a sociedade que não conseguiu desviar-nos
da bestialidade. E essa é matéria que podemos adivinhar em poemas com gatinhos
dentro, pouco dados, porém, às maciezas do exibível em contexto de rede social:
Francisco
dava de comer aos gatos no quintal
e eles vinham o pior era quando
as gatas escolhiam o quintal para dar à luz
a minha mãe enchia um balde com água
e metia lá os pequeninos até eles deixarem
de miar eles já não miavam e depois
atirava-os para o caixote do lixo
não dês de comer à merda dos gatos
já estou farta de te dizer para
não dares de comer à merda dos gatos
e a gata miava à volta do limoeiro
miava debaixo do tanque
a gata miava até a minha mãe a enxotar
a gata fugia da minha mãe a minha
mãe com a vassoura não voltes
gata de merda nunca mais te quero aqui ver
e a gata fugia mas voltava mais tarde
e eu dava-lhe de comer e quando
a minha mãe me apanhava batia-me
estou farta de te dizer
para não dares de comer à merda dos gatos
Ora aí está um poema pedagógico, educativo. Educar para a
sensibilidade, para os afectos, é isto mesmo, como podia ser a memória do porco
a guinchar durante a matança ou a avó a lambuzar-nos com beijos. Mas aqui temos
uma confrontação de maternidades — a mãe que mata as crias da gata — e
de certo modo filial — o filho que assiste ao gaticídio e contra ele actua, alimentando
os gatos, como se actuasse pela sua própria sobrevivência. Na primeira de três
partes, intitulada Rua da igreja, é quase sempre essa memória da infância que
se intromete no sentido de compreender os princípios pelos quais se rege a
educação do ser humano. A linguagem dos poemas como que coloca em cena o pensamento de
uma criança face aos gestos dos adultos, gestos quotidianos como o do avô a
caiar os muros do quintal, ou as queimadas, ou experiências mais ou menos
traumáticas que levam à conclusão: «é complicada / a vida dos adultos». Confirmamos.
O segundo conjunto de poemas reunidos neste livro intitula-se Uma cerveja na
Grécia, jogo de palavras com Uma Cerveja no Inferno (tradução de Cesariny para Une
saison en enfer, de Rimbaud). A cerveja, como sabiamente viu Cesariny,
relativiza o tempo. No acto de bebê-la há toda uma época que se degusta e
desaparece, porque o tempo é esse borbulhar efémero do gás. Pode parecer estúpido afirmá-lo, será estúpido afirmá-lo, mas menos estúpida é a ideia de justapor a Grécia ao Inferno, como que desmistificando estereótipos culturais vindos de há muito (leiam-se os românticos alemães, por exemplo, e o modo como ansiavam por uma "nova antiguidade"). As epígrafes
gregas, os envios, as citações, deslocam-nos para um tempo comparativo. Alguns
poemas são sequências, outros parecem fragmentários. No prefácio de Simão
Valente diz-se que tal como no primeiro conjunto se abordavam diferenças de
idade, neste colocam-se em cena diferenças culturais. É uma leitura possível.
Não desfazendo, prefiro insistir na relativa matéria do tempo. A morte
intromete-se em todos os poemas por oposição à vida, deixando no ar do
pensamento um sabor existencial que define limites:
outrora havia os mestres obreiros
erguiam catedrais de beleza a partir da pedra
dos anos para admiração de todos
tanto do vulgo como do senhor
quando calhava fechavam-nos numa caixa
e eles apodreciam no chão
nós os seus netos arrepiámos caminho
sabemos que entre nós e a morte
só há isto
erguer muros e sebes
para que os possamos derrubar
sabemos que esta é uma forma tão válida
como outra qualquer
de medir o tempo
Outrora agora, título de tão grande quanto esquecido
livro, a dúvida persiste, a degeneração prossegue, a corrupção continua, como
nós a fingir (o verbo surge a páginas 67) que tudo pode ser mais doce e
tolerável. Alegres canibais, então, por fim, recordando Montaigne, sábio entre
os sábios. Nos poemas do último conjunto todas estas questões ressurgem num tom
mais irónico, como o desse poema que coloca Aquiles numa partida de ténis com a
tartaruga. Talvez não se resolva a aporia de Zenão, mas a hipótese serve-se de
um nonsense capaz de ser solução para tudo isto. Ao lermos o poema
Aula de filosofia, escrito na perspectiva do aluno, lembrámo-nos do poema
Durante um exercício de filosofia, de João Miguel Fernandes Jorge, escrito na
perspectiva do professor. Mais uma vez o conflito geracional, por assim dizer,
a impelir-nos para comparações infrutíferas do antes com o depois. Sobre este,
há que denunciá-lo no que tem de turístico, patético até, e é isso que José
Pedro Moreira faz na desafiante sequência de cinco poemas intitulada Depois de
Kaprow. O tema é a arte e no que ela deu. Ou melhor, o tema é a relação que
contemporaneamente temos com isso em que deu a arte. Excelente. É destes jogos
entre o outrora e o agora que vivem os poemas de Gatos no Quintal, questionando
a vida ao mesmo tempo que procuram relativizar a morte, isto é, retirar-lhe
toda a gravidade que nos impede de viver por respeito à igreja na rua onde
fomos educados.
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