sábado, 24 de novembro de 2018

NATAL




Não gosto do Natal. Nunca gostei, mas gosto cada vez menos não gostando. Estou em valores negativos quanto a natais. Este pode parecer mais um daqueles textos estafados que se escrevem todos os anos por esta altura, ou pelo Carnaval para acusar a brasileirização do entrudo. Por esta quadra, podíamos acusar a americanização do Natal. Motivos não faltam: o Santa Claus versão Coca-Cola (arranjem um light, vestido de preto), a canção da Mariah Carey e o insuportável Jingle Bells, esta coisa nauseabunda do Black Friday. Deixemos os americanos em paz, já têm problemas que cheguem. O meu problema com o Natal é entre portas. Uma ceia de Natal à portuguesa, como hoje se pratica, fere-me a consciência. Não consigo enfardar marisco (lá em casa não se pratica o bacalhau) com a televisão a passar imagens de gente esfomeada no Iémen. Desigualdades sempre existiram! Sempre hão-de existir! Ouço os Pilatos deste novo tempo, e há tantos. Andam pelos centros comerciais desenfreadamente, sôfregos, sequiosos, ávidos, famintos de consumo. O consumismo desenfreado caracteriza hoje o Natal mais do que qualquer outra coisa, esqueçam a reflexão cristã e o menino Jesus e a salvação dos desesperados. O Natal é a celebração do desespero, na criança ansiosa pelo presente que julga merecer sem nada ter feito por ele, no pai que lho dará para se redimir de ter estado ausente o resto do ano. Natal rima com degradação, rima com desespero, rima com hipocrisia. Eu que trabalho no comércio bem o noto todos os dias, a hipocrisia do presente comprado à pressa para satisfazer o suposto amigo de que nos esquecemos. Ninguém se esquece de um amigo, foda-se. E ninguém é amigo ou deixa de ser por/para receber um presente no Natal. Temos nesta época o espectáculo da total inversão dos valores, o consumismo tudo aglutina, tudo devora. A consciência limpa-se com esmolas, os media exibem anúncios sobre anúncios onde a lamechice e o sentimentalismo, enquanto apelos à compra e à despesa e ao investimento, superam o cómico. O argumento mantém-se patológico, mas agora apostando na doença da emoção fácil. E é tudo do mais ruinoso que se possa imaginar, porque tudo fica esvaziado de valor. A bondade humana confunde-se com a capacidade de oferecer, e tanto mais te amo quanto mais dinheiro tiver investido na minha oferta. Os afectos que temos uns pelos outros são proporcionais ao dinheiro que gastamos uns com os outros, é esta a medida, é esta a moeda dos afectos.  E se o leitor pensa que isto nada tem que ver com isto ou com isto ou com isto, então é muito ingénuo. Por detrás do extermínio cresce o cancro do consumismo desenfreado, agravando a doença que levará à morte. Iremos a tempo? Desconfio cada vez mais que apenas com terapias de choque. 

4 comentários:

sonia disse...

Concordo consigo. Também detesto o Natal, diria melhor: detesto a humanidade no Natal, detesto as pessoas no Natal. Lembro-me quando era jovem e morava em Santos, que havia um cheiro diferente na noite de Natal. Era quase mágico. Eu sentia na atmosfera alguma coisa nova, especial. Hoje só sinto cheiro de embalagens, shoppings, etc. Virou um lixo!!!

Diogo Almeida disse...

todos contribuímos para a degradação. a engrenagem não gripa, o motor não falha. somos um vírus, e isso é fácil de constatar. só se fôssemos agora todos índios primitivos vegetarianos...

a única solução é o suicídio. é até um acto de bom senso. isso ou não meter mais gente no mundo. suicide-se quem tenha coragem. ou por outra, suicide-se quem não tenha medo. é mais isto.

soliplass disse...

O natal comerciado e comercial tornou-se como dizes uma galeria de horrores e ridicularias.

Mas mesmo quando era o natal mais tradicional, sem grandes prendas ou aparatos, mais a reunião de família para jantar e almoço que incluía gente até ao terceiro ou quarto grau de parentesco, a coisa não era isenta de perigos. Eu já temia aquilo por antecipação. Dois tios alcoólicos, se bem que bem-vestidos e bem-falantes, sempre arranjavam serrabulho, ofensa ou humilhação. E conversa de bola... É claro que (na tradição católica e latina da «família acima de tudo» e do «espírito natalício» e da «noite de paz e amor», quatro chapadas na tromba eram coisa impossível se bem que o mais necessário e terapêutico. Depois o espectáculo abjecto da ingestão e digestão de quantidades animalescas de comida... é no mínimo repugnante, mais digno de bestas que de homens.

De há uns anos para cá sigo a regra: natal só debaixo de telhado que seja meu, onde o imperativo seja a civilidade. Se tiver que o passar sozinho que se foda. Se tiver que ser só um cão por companhia, duas ou três torradas com manteiga compartidas, Galeano ou Sebald por leitura, já é natal bom que chegue e companhia do melhor...

Unknown disse...

Dissecaste o natal. Escalpelaste o cérebro do comprador raivoso e comprometido para encontrar elevados níveis de dopamina e adrenalina. Afinal, valeu-lhe a pena viver, pois comprou. Ou comprou-se. Ou vendeu-se? Talvez esta última.

Um abraço para ti.