TESTEMUNHA
Com o rosto enlodado, num rasgo de fúria ciosa
lavro a acta da minha pele.
Esta minha pele, fantasmal e tensa,
que envelhece sozinha.
Há respostas, condenações, há nascimentos
e marcas de unhas que significam qualquer coisa.
Mas nem isso, nem o cálice elevado pela
morte e a morte do homem pelo homem,
anunciam paz.
Como se pode ver,
no hospital terreno as normas são cruéis
e a mais cruel, a mais extensa,
manda converter o grito em injúria desolada.
Contudo, e sem os subterfúgios usuais
confesso que estou morto. Feliz Senhor!
Pois me tomas por um doente evangélico,
um paralítico,
cujo sangue indeciso derramado pelo caminho
é um olho indeciso e fumegante.
Eu nada substituí,
pois em rigor a minha permanência foi obscura.
Logo,
quando passo e queda macularam realmente minha pele,
não questionei se o beijo infalível
foi de um anjo vingativo ou de um simples louco.
Fiz questão de dizer
que o ocidente está doente de matéria e ironia.
Alberto Girri nasceu e morreu em Buenos Aires. Estudou na
Faculdade de Filosofia e Letras, onde conheceu várias personalidades dos
movimentos literários da sua época. Colaborou com a revista Sur, de Victoria
Ocampo, onde também publicou Jorge Luis Borges. Embrião da editora com o mesmo
nome, que acabaria por revelar Julio Cortázar. Mas Girri era figura discreta,
não encaixava em nenhum movimento, optou por uma existência isolada traduzindo
poetas de língua inglesa tais como William Carlos Williams, T. S. Eliot e
Robert Lowell. O seu primeiro livro foi Playa Sola (1946). O próprio definiu a
sua poesia como uma investigação acerca da realidade, na linha do que fizeram
alguns poetas norte-americanos por ele traduzidos. Reflexivos, os seus poemas
afastam-se de um lirismo subjectivo centrado nas emoções do sujeito poético.
Preferem pensar o mundo e a realidade, assumindo claramente uma inclinação para
o filosófico. Daí que frequentemente surja apelidado de "intelectual" e "frio". O poema acima transcrito é uma versão de HMBF, a partir do
original coligido por Marta Ferrari, in Antología – La poesia del signo XX
en Argentina, vol. 7 da colecção La Estafeta del Viento, dirigida por Luis
García Montero e Jesús García Sánchez, Visor Libros, 2010,pp. 101-102.
2 comentários:
Ando a gostar de conhecer estes poetas.
Este é muito bom. Todos os poemas dele que vêm na antologia tocaram-me bastante. Já andei a pesquisar mais cosias na net.
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