Já me referi anteriormente a Henry
Hathaway (1898-1985), provavelmente o mais desprezado dos classicistas de
Hollywood. Nem ter estrelado ao lado de gigantes tais John Ford (1894-1973) e
George Marshall (1891-1985), na realização de How the West Was Won (1962), lhe
valeu o reconhecimento que por certo merece. Dele sugeri The Sons of Katie
Elder (1965) e o imperdível True Grit (1969), que garantiu a John Wayne o Oscar
para melhor interpretação num papel principal. Em 2010, os irmãos Coen assinaram um remake igualmente imperdível com Jeff Bridges no papel outrora desempenhado
por Wayne. Trago agora para uma lista que ameaça não ter fim este Nevada Smith
(1966). São todos westerns da década de 1960. Convém no entanto lembrar que
alguns dos filmes de Hathaway mais reputados são de décadas anteriores. Brigham
Young (1940) é várias vezes considerado a sua obra-prima.
Nevada Smith tem
a seu favor, antes de mais, um enorme actor no papel principal. Steve McQueen,
que já tinha entrado em Os Sete Magníficos (1960), surge no papel de um
jovem mestiço (mãe índia, pai branco) que empreende uma perseguição aos brutais
assassinos da sua família. O tema é a vingança. E o trio perseguido também não é
de menosprezar: Martin Landau é o primeiro a ser apanhado, seguem-se Arthur
Kennedy (Rancho Notorious, Bend of The River) e Karl Malden (One-Eyed Jacks),
num papel deveras diferente daquele que o celebrizou em On The Waterfront
(1954).
Nevada Smith
está todo arquitectado sobre a figura do herói, um jovem tão imprudente quão obstinado,
movido pelo desejo de vingança e por uma cegueira que ameaça a toda a hora empurrá-lo
para o abismo. É uma figura verdadeiramente patética, no sentido em que nos
comove e toca pela forma desajeitada com que responde ao seu desígnio. Quando o
observamos com as mãos manchadas de sangue, o sangue dos pais brutalmente
assassinados, percebemos o estigma que lhe determinará a existência. Mais
tarde, numa sequência inesquecível, terá sobre os braços a mulher que o
ajudou a fugir de uma prisão no meio de um pântano. Tudo aqui é simbólico, a
prisão, o pântano, a mulher mordida por uma cobra perecendo nos seus braços.
Entre o sangue
nas mãos e a mulher morta nos braços alguma coisa mudou dentro de Nevada Smith,
nome que não é nome, nome que é disfarce, máscara, dissimulação. A verdade
emergirá mais tarde, arrastada pela vingança como a morte arrasta a vida. Algumas
pessoas serão decisivas ao longo do percurso. Jonas Cord, o instrutor que o
iniciará nas artes do tiro e da dúvida; Neesa, a jovem Kiowa, que ele deixará
para trás; Pilar, a mulher que lhe morrerá nos braços; o padre Zaccardi, que
contribuirá para uma inflexão de consciência. Nisto, o filme de Henry Hathaway
cede, como de costume, aos valores de um catecismo conveniente. Haverá um
momento em que a vontade de vingança cederá à expiação, mas pouco importa que
assim seja. Para a história fica Steve McQueen metade índio, metade branco,
dividido no sangue como no coração, neste como na consciência, personagem ambivalente,
desassossegada, inquieta, no encalço de uma paz que não vem por acaso, pois é
preciso abraçá-la, mas chegará quando menos se espera.
Quando o filme
começa, Max Sand (aka Nevada Smith) é um jovem analfabeto que mal sabe disparar
uma arma. A tortura a que os pais são sujeitos transforma-o. Mas esta
transformação será meramente física. Aprenderá a disparar, aprenderá a ler,
sempre com o intuito de capturar os assassinos que lhe roubaram pai e mãe. A
verdadeira transformação ocorrerá posteriormente, será interior, íntima, de
consciência. Não sabemos bem por que vias se opera, mas levá-lo-á do ódio
ao desprezo. Na cena final, não é por compaixão ou piedade que ele poupa o tiro
derradeiro. É por desprezo. Portanto, o caminho não é tão óbvio quanto podíamos
supor. Há uma nuance, a recta dobra-se em curvas e contracurvas, há oscilações,
o terreno não é plano, mas acidentado. No final, é por desprezo para com o assassino que se lhe poupa a morte. É o desprezo que desaperta o coldre e
atira a arma para o rio. Desprezo, mero desprezo.
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