terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

ANOITECER NO PARAÍSO




   Quando faleceu, Lucia Berlin (1936-2004) era pouco mais do que uma ilustre desconhecida. Granjeou maior reconhecimento com a publicação póstuma de A Manual for Cleaning Women: Selected Stories (2015), prefaciado pela escritora Lydia Davis. A curiosidade acerca da existência de Berlin não se fez esperar, surgindo de imediato uma avalanche de informações que dão conta de uma biografia fascinante. Filha de um engenheiro de minas, nasceu no Alaska mas foi crescendo em vários locais que surgirão, na sua maioria, referenciados nos seus contos: El Paso, Chile, México, Arizona, Novo México, Nova Iorque, Colorado, Los Angeles. Na nota biográfica que acompanha A Manual for Cleaning Women refere-se o alcoolismo da mãe, herdado pela filha. Também se refere a escoliose aos 10 anos de idade, os estudos na Universidade do Novo México, o primeiro casamento com um escultor, os dois primeiros filhos, o abandono do marido. Não é difícil concluir de onde veio a matéria para os contos Lead Street, Albuquerque e As esposas.
   O encontro com o poeta Edward Dorn terá sido determinante para que começasse a escrever, vindo a estrear-se apenas em 1981 com Angels Laundromat: Short Stories. Voltou a casar em 1958, com o pianista Race Newton. O jazz é outra das referências constantes nas suas histórias, quer através da evocação de composições, quer enquanto território onde habitam as personagens. La barca de la ilusión, por exemplo, coloca em cena um heroinómano que toca saxofone, apaixonado pela música de Dizzy, Bird, Jaki Byard, Bud Powell. É muito provável que Paul e Maya Newton, do excelente conto A casa de colmo com telhado de lata, sejam inspirados na relação de Lucia com Race. Mas aconselha-se alguma cautela nas extrapolações. No prefácio que escreveu para Anoitecer no paraíso (Alfaguara, Novembro de 2018), Mark Berlin, filho, não podia ser mais claro: «A mãe escrevia histórias verdadeiras; não necessariamente autobiográficas, mas bastante perto disso» (p. 11). No ciclo de amigos do casal Newton, quando as primeiras histórias começam a surgir em revistas de referência, encontramos o casal beatnik Diane di Prima e Amiri Baraka (LeRoi Jones).
   Em 1960, Lucia deixou Nova Iorque e partiu com os filhos para o México. Casou-se pela terceira e última vez com o saxofonista Buddy Berlin. Serão tempos decisivos. Berlin é viciado em heroína, tal como o personagem de La barca de la ilusión. A relação durará 8 anos, e dela surgirão mais dois filhos. Com o divórcio consumado em 1968, Lucia dedicar-se-á aos filhos e ao trabalho enquanto professora e escritora. Ao longo da vida foi ainda telefonista, auxiliar de enfermagem, mulher de limpezas… A mãe ter-se-á suicidado em 1986, a irmã morreu de cancro, o pai transformou-se numa das figuras ausentes mais interessantes dos seus contos. O final do conto intitulado Itinerário, que relata a saída do Chile a caminho da universidade no Novo México, é especialmente tocante no que diz respeito a essa relação.
   Os primeiros contos de Anoitecer no paraíso são memórias da infância em El Paso, durante a II Grande Guerra, e Santiago do Chile, depois da Guerra. A família, as assimetrias sociais, a sobrevivência, são temas tratados com clareza, sem queixume nem lamentos. Berlin reflecte a vida recordando-a, o seu material provém da experiência vivida e perdura na memória como um cheiro: «Há quem associe sempre o cheiro enjoativo das flores aos funerais. Para mim, precisa de estar misturado com o odor a estrume de cavalo» (p. 77). Cada conto é como que uma “cápsula do tempo” que nos transporta para o passado como quem folheia um álbum de fotografias, sendo que entre essas imagens e a visão que proporcionam há todo um esforço de reconstrução que rasura, mistura, subverte, acrescenta. 
   O olhar que lança sobre a vida doméstica tem, como em Raymond Carver, o encanto nostálgico de um reencontro. É como se o simples facto de termos sobrevivido ao passado agora recordado fosse já a graça suficiente de se estar vivo. E depois há a consciência da relevância do fragmento, pois: «Uma palavra, um gesto, podem mudar uma vida inteira, podem quebrar tudo ou torná-lo inteiro» (p. 100). As casas, os lugares, os objectos, tudo ganha vida nos seus contos por estar em relação directa com a existência das personagens. Há um laço inquebrável entre o lugar e o ser que não deixa de nos impressionar, sobretudo numa autora cuja vida se foi cumprindo em tantos e tão diversos lugares, condicionada pelas circunstâncias e ao sabor das ocasiões.


2 comentários:

Marina Tadeu disse...

A Lucia como Luzia servia os olhos num pires. Tenho-a aqui em inglês e no prefácio de Lydia Davis que mencionaste, o filho Mark diz assim: “Ma wrote true stories, not necessarily autobiographical, but close enough for horseshoes.” Não que esta minha observação acrescente alguma coisa mas tenho pena, estimado cowboy, que o pormenor das ferraduras tivesse sido suprimido na tradução.

hmbf disse...

Pois. Também tenho o "Manual" no original, oferecido por bom amigo. Bela Lucia...