Quando faleceu, Lucia Berlin (1936-2004) era pouco mais
do que uma ilustre desconhecida. Granjeou maior reconhecimento com a publicação
póstuma de A Manual for Cleaning Women: Selected Stories (2015), prefaciado pela
escritora Lydia Davis. A curiosidade acerca da existência de Berlin não se fez
esperar, surgindo de imediato uma avalanche de informações que dão conta de uma
biografia fascinante. Filha de um engenheiro de minas, nasceu no Alaska mas foi
crescendo em vários locais que surgirão, na sua maioria, referenciados nos seus
contos: El Paso, Chile, México, Arizona, Novo México, Nova Iorque, Colorado,
Los Angeles. Na nota biográfica que acompanha A Manual for Cleaning Women
refere-se o alcoolismo da mãe, herdado pela filha. Também se refere a escoliose
aos 10 anos de idade, os estudos na Universidade do Novo México, o primeiro
casamento com um escultor, os dois primeiros filhos, o abandono do marido. Não
é difícil concluir de onde veio a matéria para os contos Lead Street,
Albuquerque e As esposas.
O encontro com o poeta Edward Dorn terá sido determinante
para que começasse a escrever, vindo a estrear-se apenas em 1981 com Angels
Laundromat: Short Stories. Voltou a casar em 1958, com o pianista Race Newton.
O jazz é outra das referências constantes nas suas histórias, quer através da
evocação de composições, quer enquanto território onde habitam as personagens. La
barca de la ilusión, por exemplo, coloca em cena um heroinómano que toca
saxofone, apaixonado pela música de Dizzy, Bird, Jaki Byard, Bud Powell. É
muito provável que Paul e Maya Newton, do excelente conto A casa de colmo com
telhado de lata, sejam inspirados na relação de Lucia com Race. Mas
aconselha-se alguma cautela nas extrapolações. No prefácio que escreveu para
Anoitecer no paraíso (Alfaguara, Novembro de 2018), Mark Berlin, filho, não
podia ser mais claro: «A mãe escrevia histórias verdadeiras; não
necessariamente autobiográficas, mas bastante perto disso» (p. 11). No ciclo de
amigos do casal Newton, quando as primeiras histórias começam a surgir em revistas de referência, encontramos o casal beatnik Diane di Prima e Amiri
Baraka (LeRoi Jones).
Em 1960, Lucia deixou Nova Iorque e partiu com os filhos
para o México. Casou-se pela terceira e última vez com o saxofonista Buddy
Berlin. Serão tempos decisivos. Berlin é viciado em heroína, tal como o
personagem de La barca de la ilusión. A relação durará 8 anos, e dela surgirão
mais dois filhos. Com o divórcio consumado em 1968, Lucia dedicar-se-á aos
filhos e ao trabalho enquanto professora e escritora. Ao longo da vida foi
ainda telefonista, auxiliar de enfermagem, mulher de limpezas… A mãe ter-se-á
suicidado em 1986, a irmã morreu de cancro, o pai transformou-se numa das
figuras ausentes mais interessantes dos seus contos. O final do conto
intitulado Itinerário, que relata a saída do Chile a caminho da universidade no
Novo México, é especialmente tocante no que diz respeito a essa relação.
Os primeiros contos de Anoitecer no paraíso são memórias
da infância em El Paso, durante a II Grande Guerra, e Santiago do Chile, depois
da Guerra. A família, as assimetrias sociais, a sobrevivência, são temas
tratados com clareza, sem queixume nem lamentos. Berlin reflecte a vida
recordando-a, o seu material provém da experiência vivida e perdura na memória
como um cheiro: «Há quem associe sempre o cheiro enjoativo das flores aos
funerais. Para mim, precisa de estar misturado com o odor a estrume de cavalo»
(p. 77). Cada conto é como que uma “cápsula do tempo” que nos transporta para o
passado como quem folheia um álbum de fotografias, sendo que entre essas
imagens e a visão que proporcionam há todo um esforço de reconstrução que
rasura, mistura, subverte, acrescenta.
O olhar que lança sobre a vida doméstica
tem, como em Raymond Carver, o encanto nostálgico de um reencontro. É como se o
simples facto de termos sobrevivido ao passado agora recordado fosse já a graça
suficiente de se estar vivo. E depois há a consciência da relevância do fragmento,
pois: «Uma palavra, um gesto, podem mudar uma vida inteira, podem quebrar tudo
ou torná-lo inteiro» (p. 100). As casas, os lugares, os objectos, tudo ganha
vida nos seus contos por estar em relação directa com a existência das
personagens. Há um laço inquebrável entre o lugar e o ser que não deixa de nos
impressionar, sobretudo numa autora cuja vida se foi cumprindo em tantos e tão
diversos lugares, condicionada pelas circunstâncias e ao sabor das ocasiões.
2 comentários:
A Lucia como Luzia servia os olhos num pires. Tenho-a aqui em inglês e no prefácio de Lydia Davis que mencionaste, o filho Mark diz assim: “Ma wrote true stories, not necessarily autobiographical, but close enough for horseshoes.” Não que esta minha observação acrescente alguma coisa mas tenho pena, estimado cowboy, que o pormenor das ferraduras tivesse sido suprimido na tradução.
Pois. Também tenho o "Manual" no original, oferecido por bom amigo. Bela Lucia...
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