quarta-feira, 8 de maio de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #17



   Tal como nos são oferecidos desde a infância, os conceitos têm dupla face. Se nos ajudam a organizar, acabam mais tarde ou mais cedo por nos trair. Ao Zen podemos chamar filosofia prática. Correto seria, porém, que lhe chamássemos apenas Zen. Zen é Zen. Nesta simplicidade, minhas filhas, repousa adormecida a incomensurável sapiência. Despertemo-la. Como? É um mistério. Apenas a vida poderá oferecer saber à vida, apenas a experiência, a observação, a meditação. Do lado de cá da barricada tudo se constrói por parábolas, metáforas, axiomas. Os ocidentais cresceram a falar das coisas, os orientais crescem a falar com as coisas. Isto até se ocidentalizarem.
   O problema está, um dia podereis constatar, em fazer de tudo um problema. Vede como Sen no Rikyū resolvia a questão: «O chá não é mais do que isto: / Ferve-se a água / Faz-se uma infusão com chá / E bebe-se… / É tudo o que é necessário saber». Nesta concentração no necessário nos aproximamos, unimo-nos na busca do essencial, a raiz está na base. Também Epicuro, de quem vos falei, apelava ao estritamente necessário. Não cantava assim o urso Balu ao jovem Mogli? Em parando para pensar, o tormento coloca-se-nos: para que quer tanto alguém que tem apenas por certo a morte? Sabendo-se finito, por que desperdiça o homem seu tempo com ruídos desgastantes, com a tagarelice do pensamento, com absurdos existenciais?
   Ainda não chegámos lá, reconhecemos. O silêncio é o mais árduo dos caminhos, exige-nos despojamento, acção na inacção, exige que sejamos conforme a clareza das constatações. Somos bestas colectoras. Para quê ambicionar a lua se ela vem até nós? Basta, minhas queridas, que o coração se predisponha a recebê-la que se abra à sua luz nocturna. Mais do que na cabeça, Zen aloja-se nos pulmões, na respiração, como ele a poesia dissemina-se pelo ar, o pólen que floresce de estação para estação. É mistério, «no momento em que um pensamento o toca, desaparece». O mais aprende-se com silêncio, no silêncio, pois este é meio e é fim. Mesmo quando em retiro a ironia nos desmente. Observai os quatro monges num retiro de silêncio absoluto:

A vela apagou-se!, diz o mais jovem dos monges.
Não deves falar! É um sesshin (espécie de retiro) de silêncio total, observa severamente um monge mais velho.
Porque falam, em vez de se calarem, como tinha sido combinado! faz notar com humor um terceiro monge.
Sou o único que não falou!, diz com satisfação o quarto monge.

   Está a graça na desgraça. Assim andamos na vida, a falar por cima do silêncio a que nos propomos. A contradição não é motivo de censura, antes factor de aprendizagem. O desafio está em superar tamanha contradição. Zen coloca-nos perante este desafio como o mestre que diz ao discípulo: caminha parado, no presente está a eternidade. Temos muito a aprender com Os Melhores Contos Zen, mesmo que não sejam os melhores, mesmo que tais classificações impliquem já uma selectividade contrária ao próprio Zen. Samurais, monges, velhos poetas, viajaram em busca da liberdade através de um sonho bem desperto: desfazerem-se do Eu. Como pode alguém desfazer-se do Eu? Ora, ora, simplesmente desfazendo.

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