A cidade é Tebas. Foi Cadmo quem a fundou, depois de lhe
ter sido entregue a missão de recuperar uma Europa raptada. Em Tebas vive uma
família, a de Édipo. Conhecemos a versão que Sófocles lhe ofereceu numa das mais
famosas tragédias gregas. Édipo nasceu amaldiçoado, matou o pai, casou com a
própria mãe, Jocasta, com quem teve três filhos, Etéocles, Isménia, Antígona,
Polinices, furou os olhos quando finalmente percebeu a embrulhada em que se
metera. A cidade de Tebas é aterrorizada pela Esfinge e perseguida pelas
maldições de uma família desavinda. Com “As Fenícias”, Eurípedes propôs um
outro enfoque para a tragédia de Édipo. Ele conseguiu derrotar a Esfinge, já
está cego, mas Jocasta ainda não se suicidou. Amaldiçoados pelo pai, os filhos varões
de Édipo e Jocasta confrontam-se pelo domínio de Tebas. Matam-se um ao outro no campo de
batalha, para desgosto da mãe, que perante o cadáver dos filhos se
degolará.
É típico da tragédia grega que o destino se sobreponha às
decisões. Estas são quase sempre erradas, na medida em que pretendem opor-se ao
destino, ou seja, desviam-se dos vaticínios divinos. Jocasta não se matou por
vergonha, mas sim por amor aos filhos, ou talvez por entender finalmente que
era esse o seu destino. Há coisas que nunca mudam, esta é uma delas. A história
da humanidade prossegue aparentemente ao acaso sobre um mar de sangue. É o sangue
que nos liga, o sangue derramado em guerras violentas, o sangue que transmitido
de geração em geração faz da humanidade uma grande família. Uma grande família
que se mata, que se autodestrói, que se corrompe. Uma grande família selvagem a tomar decisões erradas, comportando-se como feras, bestas, animais. Onde fica a
liberdade no meio disto? E o amor? Se o destino comanda o curso da História,
para onde nos envia ele? O maior desafio que a tragédia nos coloca é esse
entendimento do Tempo que transcende as circunstâncias.
O dramaturgo inglês Martin Crimp (n. 1956) recuperou “As
Fenícias” numa peça com um título tão enigmático quanto a Esfinge: “O Resto Já
Devem Conhecer do Cinema” (2013). Na produção levada a cabo pelo Teatro
Nacional São João, em colaboração com o Teatro da Rainha, o cenário coloca o
público no centro da arena. As bancadas que no palco estão voltadas para a sala
transformam o público numa espécie de cenário vivo e inesperado. Nós somos o
grande espectáculo da humanidade que as palavras dos actores ecoam. Daí
que o coro de raparigas fenícias, trajadas como revolucionárias maoístas,
usando por vezes sobre o cabelo o véu da vergonha, se nos dirija mais para
confundir do que para esclarecer. Como na antiguidade, elas dançam e cantam,
mas sobretudo encenam, sabem a peça de cor e salteado, sobrepõem-se com jogos
fonéticos às falas dos actores, dirigem os actores, e provocam-nos com
inquéritos, questionários, com fragmentos do mundo "burrocrático" e estatístico em
que vivemos, retratos violentos da nossa própria mortandade. Serão más? São reveladoras.
Para lá das circunstâncias, o que sabemos do cinema não
esgota o que o Teatro tem para dizer. O essencial é dito ali, o resto é
provável que o saibamos do cinema. Ele deu-nos a ver guerras, o sangue, os efeitos
especiais da morte, o espectáculo da decadência, foi-nos dado ver pelo cinema o
grande fogo-de-artifício da violência, dos massacres, dos genocídios, das
fábricas de morte, com corpos estropiados, exangues, a carne a ser rasgada por
punhais, balas, o cinema reproduziu com impressionante naturalidade a
selvajaria dos homens. Um excerto de um filme de Pasolini é-nos mostrado, o
olhar inocente de um bebé ao colo de uma mãe que o amamenta. O que fica por
dizer? O que fica por mostrar? O que fica por saber?
Quando numa sala a tela é
substituída pelo corpo dos actores, desfaz-se o distanciamento que existia entre
a representação e o objecto representado. Agora estamos na presença de, somos
nós, a humanidade inteira ali representada, quem actua dentro do seu próprio
filme. Há qualquer coisa de muito especial neste tipo de relação que é difícil
de explicar. Pelo texto percebemos que apesar da linguagem ser outra, os gestos
permanecem intactos. A família de Tebas serve de exemplo, a sua história é de
algum modo a nossa história, actualizada pelos modos de ser e de dizer que as
circunstâncias transformam. Mas o essencial permanece, esse entendimento do
Tempo que transcende as circunstâncias.
Em entrevista, Crimp revela que queria que o coro fosse
constituído por crianças. Imagem de futuro. Problemas de produção levaram-no a
optar por jovens mulheres, crianças e adultas ao mesmo tempo, adolescentes, ou “adultescentes”,
jovens mulheres enérgicas, vivas, férteis. São elas quem marca o ritmo, transportando
para a actualidade o clássico. Fazendo-nos ver, com a clareza que apenas os cegos
Édipo e Tirésias parecem conseguir ver, a força do destino nas nossas decisões.
Deixa então de haver cisões no Tempo, isto é, deixa de haver passado e
presente, todo o Tempo é a História de um futuro adivinhável onde
se repetirão guerras, mortes, sangue, maldade. E o bem que a arte resgata da miséria universal.
Na imagem ao alto: Édipo detém Antígona.
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