sábado, 25 de maio de 2019

O RESTO JÁ DEVEM CONHECER DO CINEMA



   A cidade é Tebas. Foi Cadmo quem a fundou, depois de lhe ter sido entregue a missão de recuperar uma Europa raptada. Em Tebas vive uma família, a de Édipo. Conhecemos a versão que Sófocles lhe ofereceu numa das mais famosas tragédias gregas. Édipo nasceu amaldiçoado, matou o pai, casou com a própria mãe, Jocasta, com quem teve três filhos, Etéocles, Isménia, Antígona, Polinices, furou os olhos quando finalmente percebeu a embrulhada em que se metera. A cidade de Tebas é aterrorizada pela Esfinge e perseguida pelas maldições de uma família desavinda. Com “As Fenícias”, Eurípedes propôs um outro enfoque para a tragédia de Édipo. Ele conseguiu derrotar a Esfinge, já está cego, mas Jocasta ainda não se suicidou. Amaldiçoados pelo pai, os filhos varões de Édipo e Jocasta confrontam-se pelo domínio de Tebas. Matam-se um ao outro no campo de batalha, para desgosto da mãe, que perante o cadáver dos filhos se degolará.
   É típico da tragédia grega que o destino se sobreponha às decisões. Estas são quase sempre erradas, na medida em que pretendem opor-se ao destino, ou seja, desviam-se dos vaticínios divinos. Jocasta não se matou por vergonha, mas sim por amor aos filhos, ou talvez por entender finalmente que era esse o seu destino. Há coisas que nunca mudam, esta é uma delas. A história da humanidade prossegue aparentemente ao acaso sobre um mar de sangue. É o sangue que nos liga, o sangue derramado em guerras violentas, o sangue que transmitido de geração em geração faz da humanidade uma grande família. Uma grande família que se mata, que se autodestrói, que se corrompe.  Uma grande família selvagem a tomar decisões erradas, comportando-se como feras, bestas, animais. Onde fica a liberdade no meio disto? E o amor? Se o destino comanda o curso da História, para onde nos envia ele? O maior desafio que a tragédia nos coloca é esse entendimento do Tempo que transcende as circunstâncias.
   O dramaturgo inglês Martin Crimp (n. 1956) recuperou “As Fenícias” numa peça com um título tão enigmático quanto a Esfinge: “O Resto Já Devem Conhecer do Cinema” (2013). Na produção levada a cabo pelo Teatro Nacional São João, em colaboração com o Teatro da Rainha, o cenário coloca o público no centro da arena. As bancadas que no palco estão voltadas para a sala transformam o público numa espécie de cenário vivo e inesperado. Nós somos o grande espectáculo da humanidade que as palavras dos actores ecoam. Daí que o coro de raparigas fenícias, trajadas como revolucionárias maoístas, usando por vezes sobre o cabelo o véu da vergonha, se nos dirija mais para confundir do que para esclarecer. Como na antiguidade, elas dançam e cantam, mas sobretudo encenam, sabem a peça de cor e salteado, sobrepõem-se com jogos fonéticos às falas dos actores, dirigem os actores, e provocam-nos com inquéritos, questionários, com fragmentos do mundo "burrocrático" e estatístico em que vivemos, retratos violentos da nossa própria mortandade. Serão más? São reveladoras.
   Para lá das circunstâncias, o que sabemos do cinema não esgota o que o Teatro tem para dizer. O essencial é dito ali, o resto é provável que o saibamos do cinema. Ele deu-nos a ver guerras, o sangue, os efeitos especiais da morte, o espectáculo da decadência, foi-nos dado ver pelo cinema o grande fogo-de-artifício da violência, dos massacres, dos genocídios, das fábricas de morte, com corpos estropiados, exangues, a carne a ser rasgada por punhais, balas, o cinema reproduziu com impressionante naturalidade a selvajaria dos homens. Um excerto de um filme de Pasolini é-nos mostrado, o olhar inocente de um bebé ao colo de uma mãe que o amamenta. O que fica por dizer? O que fica por mostrar? O que fica por saber? 
   Quando numa sala a tela é substituída pelo corpo dos actores, desfaz-se o distanciamento que existia entre a representação e o objecto representado. Agora estamos na presença de, somos nós, a humanidade inteira ali representada, quem actua dentro do seu próprio filme. Há qualquer coisa de muito especial neste tipo de relação que é difícil de explicar. Pelo texto percebemos que apesar da linguagem ser outra, os gestos permanecem intactos. A família de Tebas serve de exemplo, a sua história é de algum modo a nossa história, actualizada pelos modos de ser e de dizer que as circunstâncias transformam. Mas o essencial permanece, esse entendimento do Tempo que transcende as circunstâncias.
   Em entrevista, Crimp revela que queria que o coro fosse constituído por crianças. Imagem de futuro. Problemas de produção levaram-no a optar por jovens mulheres, crianças e adultas ao mesmo tempo, adolescentes, ou “adultescentes”, jovens mulheres enérgicas, vivas, férteis. São elas quem marca o ritmo, transportando para a actualidade o clássico. Fazendo-nos ver, com a clareza que apenas os cegos Édipo e Tirésias parecem conseguir ver, a força do destino nas nossas decisões. Deixa então de haver cisões no Tempo, isto é, deixa de haver passado e presente, todo o Tempo é a História de um futuro adivinhável onde se repetirão guerras, mortes, sangue, maldade. E o bem que a arte resgata da miséria universal.

Na imagem ao alto: Édipo detém Antígona.

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