Acolhemos a poesia de António Poppe (n. 1968)
como a uma oferenda, ela dirige-se-nos sem qualquer tipo de imposição, não
chega sequer a pedir que a aceitemos, oferece-se-nos, e nós ou a rejeitamos ou
a acolhemos. Dois anos precisos separaram as publicações de “medicin.” (Douda
Correria, Maio de 2015) e “come coral” (Douda Correria, Maio de 2017), dois
anos passados aqui estamos a lê-los e a partilhar com quem nos leia o que da
sua leitura nos ficou. Em ambos os casos há contextualizações que convém ter em
conta, a mais relevante das quais é a declaração de uma polifonia com origens
muito díspares. O primeiro paradoxo, pelo menos aparente, é o modo como na raiz
dessa polifonia encontramos a experiência do silêncio. A nota que precede “come
coral” disso dá conta, aí se revelando que o livro surgiu de um «retiro de
meditação Vipashyana». As palavras que lemos terão sido proferidas «literalmente
de cor» para um gravador após dez dias de silêncio, apresentando-se como uma
impressão do silêncio naquele que as diz. À superfície surdem então as palavras
sem que um qualquer sentido lógico e sintáctico as delimite, surgem expurgadas
de significados semânticos precisos, surgem como uma espécie de luz que se
levanta ao raiar do dia ou como o som do vento percepcionado pelo corpo entendido
enquanto vibração.
Em ambos
os livros o processo assemelha-se, embora no segundo seja mais evidente até
pelos efeitos ecóicos dos versos. Há sonoridades de “medicin.” que se repetem
em "come coral", este mesmo título provém do livro anterior. Mais do que
recordação, como previne António Poppe, trata-se de (re)impressão, ou seja,
trata-se já do modo como o corpo assimilou as palavras permitindo que as mesmas
fluam no sangue e na respiração. A subordinação do corpo à mente, belamente
ilustrada na capa de “medicin.”, não é tanto uma subordinação como resulta numa
libertação. A prática do yoga consiste precisamente nessa educação do corpo
para a dança, isto é, para uma libertação daquilo que o leva ao sofrimento, daquilo
que o aprisiona e fere. Assim sendo, devemos também elevar o facto de toda esta
poesia nos chegar como uma manifestação rítmica, musical, onde não só as vozes
se misturam, como as próprias línguas e linguagens se fundem, num processo de
transmutação da palavra que me parece especialmente enriquecedor. É óbvio que
neste processo encontramos jogos fonéticos típicos, resultantes de aliterações,
cacofonias, aglutinações, anacolutos, embora o resultado tenha muito mais que
ver com uma forma ocidental de assimilar o mantra do que com um trabalho de
desconstrução gramatical.
Estamos
a falar de um discurso altamente espontâneo e livre, um discurso através do
qual as imagens irrompem com configurações sonoras e luminosas que resistem a
qualquer tentativa de resolução formal. Talvez faça até mais sentido falar de
anti-discurso. Por isso mesmo não devemos admirar-nos daquilo a que em
circunstâncias normais chamaríamos um mesmo poema surgir em ocasiões diferentes
naturalmente transformado em pormenores vocabulares que estão relacionados com
a espontaneidade da construção subjacente ao próprio poema: «pousa de
amamentar pedra-amante / achado o
veio entre boca e nariz» (in “medicin.”);
«pausa de amamentar desfechado aqui
achado o / veio entre boca e nariz» (in
“come coral”). São vários os exemplos que podíamos dar desta transformação a
que o poema é sujeito, já não entendido como fixação, palavra petrificada, mas
antes oferecido como corpo vivo, fruto de uma respiração incessante.
Ka, sílaba semente que surge em ambos os conjuntos à maneira de princípio
fundador, pode tanto aludir a essa alma que ligava os homens aos deuses no
antigo Egipto como a um mantra semelhante ao Om hindu, som de cuja vibração o
universo surge. São sons que semeiam, são a mais primitiva origem das palavras,
é na direcção dessa origem que António Poppe mergulha fazendo expandir em
círculos e ciclos uma poesia diferente das demais que vão sendo publicadas
entre nós. A espaços, surge uma alegoria, uma parábola, colhida entre os índios
Yanomami ou na filosofia zen, mas surgem sempre inseridas num absoluto do qual
não se destacam, são inerentes ao ser, são parte integrante de um todo em
que cada partícula manifesta esse todo mais do que se manifesta a si mesma isoladamente. Do mesmo modo, as múltiplas vozes que se fundem nestes textos como
que abdicam da sua individualidade para, fundindo-se umas nas outras, gerarem
um novo corpo, uma nova e multicolorida voz. Porque o som mais vibrante desta
poesia é precisamente a sua universalidade, a capacidade de aglutinar numa sílaba
as tonalidades aparentemente mais antagónicas.


2 comentários:
Há muitos anos, em Nova Iorque, o Poppe disse o "Falemos de casas..." e eu acompanhei-o à guitarra. Nunca mais o vi.
Ora aí está um momento que eu teria pago para ouver.
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