Neal Cassady morreu com 42 anos. Parece mais velho nas
fotografias. Todos eles parecem mais velhos, apesar dos baços musculados e dos
troncos tonificados. Só Ginsberg aparenta a idade que tem, uma idade sem idade.
Todos os outros ficaram na juventude com ar de gente crescida, transitando a
200 à hora sem respeito pela sinalização. O rolo original não tem fim, o fim
desfez-se no estômago de um cão de nome Potchky. Imagino o animal a devorar as
palavras de Kerouac com a mesma fúria que ele e os companheiros metiam na
estrada, aventurando-se pelo desconhecido sem guias nem mapas, aceitando a loucura
como condição essencial da liberdade que anima qualquer descoberta.
Kerouac
confunde-nos, diz que o livro é um quadro, escreve como quem pinta, retrato
impressionista, que alguns dirão desleixado, preocupado apenas em aproveitar
aquele momento de luz que fecunda as palavras. Viajar, foder, beber, acelerar o
corpo ao ritmo do bebop, buscar a experiência mística que purifica a alma
através do corpo esgotado, «um delírio tamanho, uma enorme correria», capaz de deslumbrar-se com sítios e lugares sem neles permanecer mais do que o instante indefinível
de uma experiência única: «Acordei quando o Sol começava a ficar vermelho, e
essa foi uma ocasião única na minha vida, o momento mais estranho de todos, em
que deixei de saber quem era…estava longe de casa, obcecado e cansado da
viagem, num quarto de hotel barato que não conhecia» (p. 28).
Por estar longe
de casa aceitemos a ideia de corpo a libertar-se do corpo, chegada a uma nova
dimensão que encontramos também no “eremita viajante”. Nirvana? Não é de agora nem de
ontem, ande-se à boleia ou caminhando, que o distanciamento desses lugares onde
julgamos estarem as raízes permite ao peregrino vislumbrar-se a si mesmo na
relação com o outro, com o acaso, com o acidente. Hoje diz-se zona de conforto, como se pudesse haver conforto num corpo enraizado. O ponto de partida é sempre igual ao ponto de chagada: desassossego.
Deslocação da ordem para o
caos, esta longa peregrinação pela América do pós-guerra em busca do paraíso na
Terra é típica de quem procura e busca. Neal surge como uma espécie de profeta
da inquietação absoluta, transcende a «cambada com pretensões artísticas»
que está «por toda a América a esgotar-lhe o sangue», a sua errância, vagabundagem, faz-se acompanhar de uma capacidade de desenrascanço que nada tem
que ver com a previsibilidade das dialécticas oficiais. O tom crítico é óbvio: «A
tristeza americana e a loucura americana eram um poço sem fundo» (p. 111), «Esta
é a história da América. Toda a gente faz o que julga que se espera que se
faça» (p. 75). Excepto os peregrinos alucinados e frenéticos das viagens
circulares, andando de um lado para o outro, prontos para partir, sempre prontos para partir, deslumbrando-se com fauna e flora, pintando a paisagem com os olhos, sentindo,
eu sentia-me, tu sentias-te, nós sentíamo-nos, percorrendo os campos a pé,
colando alcatrão às solas, olhando para cima: «Levantei os olhos para o céu
escuro e pedi a Deus melhor sorte na vida e uma oportunidade melhor para fazer
alguma coisa pelas pessoas humildes que amava. Ninguém me dava atenção lá no
alto. Já devia ter desconfiado» (p. 102).
Neal Cassady podia ser o amigo imaginário
da juventude perdida. Entre esta gente que morreu tão nova (Kerouac com apenas
47 anos, mais 5 que Cassady) o tempo deixa de se medir pelos calendários, passa
a medir-se por um termómetro. O que importa é a intensidade e a paixão
colocadas na caminhada, a febre, não interessa estender a passadeira do tempo para nela
ir exibindo aos tombos a decadência de um corpo a definhar. Questionam-se
acerca da morte, a angústia é a mesma, as dúvidas são as mesmas, mas a vontade
de saltar os muros dessa prisão em que alguns transformam a vida é muito mais forte.
Cito: «Todos os destroços da minha vida passaram a boiar pelos meus olhos
cansados, e percebi que por mais que façamos o mais certo é no fim ser tudo um
desperdício de tempo pelo que mais vale enlouquecermos de vez. (…) A verdade
pura e dura é que morremos, tudo o que fazemos é morrer, e contudo vivemos, ah
sim vivemos, e isso não é nenhuma mentira académica» (p. 180). “On the Road”
relata uma experiência mística, a viagem é o que eleva o corpo ao espírito através
do esgotamento do corpo, o jazz é o canto gregoriano praticado por estes monges
do desassossego, a viagem é na direcção de uma paz e de um Deus que se confunde
com vida selvagem, vida pura, sem rumo para um único destino certo: a morte.
Nas fotografias parecem todos mais velhos, mas eram novos, morreram novos,
morreram vivos. Quem és tu Neal Cassady? Em que se transformou a tua carne?
Quantos hoje beberão do teu sangue e se alimentarão do teu corpo?
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