Como sabeis, tenho a pancada das listas. Faço listas de
tudo, dos livros que mais gostei de ler, dos discos que mais gostei de ouvir,
dos lugares que mais gostei de visitar, dos objectos decorativos que mais
aprecio, dos filmes preferidos, dos concertos, das obras de arte, de compras,
de angústias e desesperos, de paixões e embaraços. Geralmente imponho-me uma
ordem. As listas oferecem-me certa organização ao pensamento, ajudam-me a
enquadrar factos. É obsessão que não aconselho a ninguém, julgo que ocupa em
mim o lugar que noutros é ocupado pelo coleccionismo. Nunca tive espírito de
coleccionador, irrita-me procurar. Prefiro ser surpreendido pelo encontro
inesperado. Colecciono listas, são a excepção.
Muitas das listas que faço seguem datas, outras obedecem
ao alfabeto. Por alfabeto, quais os meus escritores preferidos? E então listo:
Artaud, Beckett, Camus, Dostoiévski, etc.. Estas listas não são dicionários,
nem se pretendem enciclopédicas. Quero-as flexíveis, efémeras. Podem ter
aspectos distintos num mesmo dia, por certo não se aguentam mais do que horas.
Altero-as de um dia para o outro, com pequeníssimas excepções. Por causa das
listas sei dizer-vos qual a minha canção preferida: “Redondo Vocábulo”. E sei
dizer-vos qual o meu filme preferido: “Nostalgia”, do Tarkovski. E até arrisco
que o meu livro preferido é o “Livro do Desassossego”. Sei estas coisas porque
sempre que penso nestas coisas são estes os nomes que surgem primeiro, são
estas as palavras que se sobrepõem a todas as outras.
Alguns dos livros que publiquei foram organizados
alfabeticamente, dispondo os textos pela ordem alfabética dos títulos. Não
estou interessado na ordem cronológica dos textos, mas interesso-me por datas
de nascimento. Isto para vos dizer, minhas filhas, que as listas dão jeito, são
um admirável auxiliar da memória e facilitam a arrumação da História e dos
conceitos e das ideias e das imagens. A cada uma dessas listas posso dar o nome
de vade-mécum, como antigamente se dava a pequenas obras de consulta para
orientação de espíritos inquietados pela doença da dúvida. Ao pensar nestas
coisas lembrei-me que talvez gostásseis de conhecer o “Pequeno Vade-Mécum” (Antígona,
Março de 2004) de Montaigne (n. 1533 – m. 1592), síntese do pensamento de um
homem que preferia a acção. Ou talvez preferisse o pensamento em acção, conceito
hoje estranho a mestres de secretária e seus embasbacados pupilos. Diz ele
sobre o cu: «No trono mais alto do mundo, continuamos a estar sentados no nosso
cu».
Nesta obra ides encontrar fragmentos colhidos nos seus
inúmeros ensaios. Nele se elogia ter recusado transformar a opinião em poder,
como hoje podeis constatar ser regra. Não é a isso que determina a opinião
pública? Nele se elogia o desprezo pela violência e pela crueldade, males que
nenhuma tecnologia soube tratar. Nele se elogia a defesa do prazer, ao
contrário do discurso vigente que obriga a pedir perdão pelo riso e a exaltar
todas as formas de sofrimento como vias na direcção do espírito. Contra o
sacrifício, a palavra de Montaigne: «Quanto a mim, amo a vida e cultivo-a tal
como Deus entendeu conceder-no-la. Não desejaria que ela ignorasse a
necessidade de beber e de comer».
Os ensaios de Montaigne fazem o elogio da vida num tempo
seu que, tal como no nosso, padecia de intolerâncias diversas e muros intransponíveis.
Se ouvirdes dizer que está melhor, desconfiai. Podeis estar a falar com uma
mente insensível. Se ouvirdes dizer que está pior, desconfiai também. Podeis
estar a falar com uma mente apocalíptica. Em ambos os casos sugiro que vos acauteles
contra profecias da desgraça e alegrias tontas, sendo o justo meio sugerido por
Gramsci o mais recomendável: pessimismo da inteligência, optimismo da vontade.
E a utopia no horizonte a guiar-nos com o gozo de estarmos vivos e capazes de
dizer “não sei”: «Todos os abusos do mundo resultam do facto de nos ensinarem a
ter medo de manifestarmos a nossa ignorância».
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