quarta-feira, 3 de julho de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #21


Como sabeis, tenho a pancada das listas. Faço listas de tudo, dos livros que mais gostei de ler, dos discos que mais gostei de ouvir, dos lugares que mais gostei de visitar, dos objectos decorativos que mais aprecio, dos filmes preferidos, dos concertos, das obras de arte, de compras, de angústias e desesperos, de paixões e embaraços. Geralmente imponho-me uma ordem. As listas oferecem-me certa organização ao pensamento, ajudam-me a enquadrar factos. É obsessão que não aconselho a ninguém, julgo que ocupa em mim o lugar que noutros é ocupado pelo coleccionismo. Nunca tive espírito de coleccionador, irrita-me procurar. Prefiro ser surpreendido pelo encontro inesperado. Colecciono listas, são a excepção.
Muitas das listas que faço seguem datas, outras obedecem ao alfabeto. Por alfabeto, quais os meus escritores preferidos? E então listo: Artaud, Beckett, Camus, Dostoiévski, etc.. Estas listas não são dicionários, nem se pretendem enciclopédicas. Quero-as flexíveis, efémeras. Podem ter aspectos distintos num mesmo dia, por certo não se aguentam mais do que horas. Altero-as de um dia para o outro, com pequeníssimas excepções. Por causa das listas sei dizer-vos qual a minha canção preferida: “Redondo Vocábulo”. E sei dizer-vos qual o meu filme preferido: “Nostalgia”, do Tarkovski. E até arrisco que o meu livro preferido é o “Livro do Desassossego”. Sei estas coisas porque sempre que penso nestas coisas são estes os nomes que surgem primeiro, são estas as palavras que se sobrepõem a todas as outras.
Alguns dos livros que publiquei foram organizados alfabeticamente, dispondo os textos pela ordem alfabética dos títulos. Não estou interessado na ordem cronológica dos textos, mas interesso-me por datas de nascimento. Isto para vos dizer, minhas filhas, que as listas dão jeito, são um admirável auxiliar da memória e facilitam a arrumação da História e dos conceitos e das ideias e das imagens. A cada uma dessas listas posso dar o nome de vade-mécum, como antigamente se dava a pequenas obras de consulta para orientação de espíritos inquietados pela doença da dúvida. Ao pensar nestas coisas lembrei-me que talvez gostásseis de conhecer o “Pequeno Vade-Mécum” (Antígona, Março de 2004) de Montaigne (n. 1533 – m. 1592), síntese do pensamento de um homem que preferia a acção. Ou talvez preferisse o pensamento em acção, conceito hoje estranho a mestres de secretária e seus embasbacados pupilos. Diz ele sobre o cu: «No trono mais alto do mundo, continuamos a estar sentados no nosso cu».
Nesta obra ides encontrar fragmentos colhidos nos seus inúmeros ensaios. Nele se elogia ter recusado transformar a opinião em poder, como hoje podeis constatar ser regra. Não é a isso que determina a opinião pública? Nele se elogia o desprezo pela violência e pela crueldade, males que nenhuma tecnologia soube tratar. Nele se elogia a defesa do prazer, ao contrário do discurso vigente que obriga a pedir perdão pelo riso e a exaltar todas as formas de sofrimento como vias na direcção do espírito. Contra o sacrifício, a palavra de Montaigne: «Quanto a mim, amo a vida e cultivo-a tal como Deus entendeu conceder-no-la. Não desejaria que ela ignorasse a necessidade de beber e de comer».
Os ensaios de Montaigne fazem o elogio da vida num tempo seu que, tal como no nosso, padecia de intolerâncias diversas e muros intransponíveis. Se ouvirdes dizer que está melhor, desconfiai. Podeis estar a falar com uma mente insensível. Se ouvirdes dizer que está pior, desconfiai também. Podeis estar a falar com uma mente apocalíptica. Em ambos os casos sugiro que vos acauteles contra profecias da desgraça e alegrias tontas, sendo o justo meio sugerido por Gramsci o mais recomendável: pessimismo da inteligência, optimismo da vontade. E a utopia no horizonte a guiar-nos com o gozo de estarmos vivos e capazes de dizer “não sei”: «Todos os abusos do mundo resultam do facto de nos ensinarem a ter medo de manifestarmos a nossa ignorância».

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