Depois há aqueles que passam pelo mundo como um terramoto,
deixando no rastro da sua passagem um monte de destroços que a história se
encarregará de limpar, conservando em mausoléu, claro, resquícios da ruína, para que os vindouros possam revisitar a loucura em classe turística.
Por cá falamos de marginais e de libertinos, fazemos listas de
vagabundos e de alienados segundo diagnóstico oficial. Cada qual com as suas
raízes, certo é que não passaram a vida à secretária. O corpo ofereceu-se à
aridez das ruas, a mente ressentiu-se. Lá fora o mundo é mais vasto,
abre-se-nos como um mar para que tenhamos noção da incomensurável pequenez que
nos coube. Só tamanha consciência nos livrará de sermos tacanhos.
Tomemos de exemplo o caso Artaud, quase uma década de
vida a viajar entre hospícios, mais de cinquenta sessões de electrochoques
rematadas com overdose de hidrato de cloral. Pedro Eiras reuniu-lhe e
traduziu-lhe «diversos textos escritos nos últimos três anos de vida», entre os
quais a célebre peça para rádio que à última hora acabaria proibida. Há muito
que se encontrava esgotada, ou a preços proibitivos nas vitrinas dos
alfarrabistas, a versão de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes, pelo que se saúda o ressurgimento de “Para Acabar de Vez com o Juízo de
Deus e Outros Textos Finais (1946-1948)” (FLOP, Março de 2019), até pelo que à
peça central se acrescenta de poemas e cartas dispersos.
Antonin Artaud (1896-1948) não era figura desconhecida
quando produziu estes escritos, entre os quais encontramos também o ensaio
dedicado ao pintor holandês Vincent van Gogh: “Van Gogh, o Suicidado da
Sociedade” (1947). As sementes do teatro da crueldade tinham sido lançadas
ainda antes da Segunda Grande Guerra, vindo esta a comprovar que a arte ficará
sempre aquém da realidade em matéria de barbárie. O grito de Artaud fez-se
ouvir contra as forças de poder, contra as camisas de força decretadas enquanto
farda oficial de sociedades opressivas e esmagadoras da energia individual. O
poema “Soco e Esporra” é elucidativo:
(…)
Nunca fundei, lancei ou segui um movimento.
Fui surrealista, é um facto,
mas acho que devia sê-lo de facto,
e era-o de facto mas não quando lançava ou assinava
manifestos
a menos que fosse para insultar
um papa,
um dalai-lama,
um buda,
um médico,
um erudito,
um padre,
um chui,
um poeta,
um escritor,
um homem,
um pedagogo,
um revolucionário,
um anarquista,
um cenobita,
um eremita,
um reitor,
um iogui,
um ocultista.
(…)
São múltiplos,
portanto, os alvos, e Artaud desfere contra eles o escarro sufocado da besta,
infligido pelos padrões que determinam a fronteira entre loucura e normalidade. Se é que a há, arrisco eu, de olhos postos no panorama ambíguo da actualidade. Detido na camisa de força que a sociedade impingiu, Artaud não tentou libertar-se à laia de escapista. Seria façanha paupérrima para alguém cuja morte provou não haver
truques na manga. Os seus textos não resultam de um qualquer talento para a
prestidigitação, mas sim da necessidade absoluta que solta da garganta o berro de
um animal ferido.
Nascido no ano
em que Artaud sucumbiu, o espanhol Leopoldo María Panero (1948-2014) é outro
caso sério de uma alma que em vida carregou a cruz da alucinação. Sobre este
pesa desde a infância o apelido respeitável, cedo exorcismado à conta de muito
álcool e heroína. A história volta a ser contada por Jorge Melícias, responsável
pela selecção e tradução dos poemas coligidos em “A Canção do Croupier do
Mississípi e Outros Poemas” (Antígona, Maio de 2019): filho do poeta oficial do
franquismo, filiou-se no Partido Comunista Espanhol, foi detido, inicia uma
longa peregrinação ao inferno da heroína, estuda filosofia e letras, começa a
ter crises depressivas, tenta suicidar-se, diagnosticam-lhe esquizofrenia, passa
por vários internamentos psiquiátricos… O resto é literatura.
Ao contrário de
Artaud, cuja obra se ergue mormente contra forças externas, a poesia de Panero
parece antes reflectir um processo de autodestruição que tem na sua origem as
raízes familiares. Revolta-se contra o berço em que nasceu e, por consequência,
contra a Espanha hipócrita da ditadura. Seria interessante tentar compreender o
papel da figura materna neste processo, a qual percorre vasta obra em múltiplas
reencarnações. E se logo no poema Pavane Pour Un Enfant Défunt lembra que
«todos temos dentro de nós uma criança morta» (p. 17), será em Ma Mère,
dedicado a uma «desoladora mãe», que melhor se compreenderá o suplício dessa
morte: «eu contemplava o meu cérebro para sempre esmagado / e a minha mãe ria»
(p. 23).
Se a mãe é quem
gera, a pátria — «lugar parecido com o Inferno» (p. 49) — é
quem forma. Nos seus delírios desviantes a poesia de Leopoldo María Panero
assemelha-se a uma experiência de regressão ao encontro da tormenta, correspondendo
cada poema ao parto libertador de uma alma mortificada. Assim é no poema O
Circo, nas excrescências de um corpo enfermo e na porcaria por ele expelida,
na sucessão de imagens abjectas que ecoam obsessões igualmente presentes na
obra de Artaud, confluindo para uma estranha simbologia de cadáveres que riem e
ruínas coloridas. Blasfemo, raivoso, o poeta exalta o incesto e a necrofilia,
confere à poesia a função destrutiva de uma apostasia reveladora.
Tanto Antoni
Artaud como Leopoldo María Panero colocam-nos face ao abismo com as obras que
deixaram. Lemos as suas palavras como quem se sente tocado pela ferida, sendo
justo aqui falar de uma violência que nada tem de gratuito precisamente por ter
sido vivida. A experiência de leitura que proporcionam não equivale a uma volta
de carrossel no parque de diversões da indústria metafórica, pois sabemos ter
havido por detrás de cada uma daquelas palavras um sofrimento incalculável que jamais
se compadeceria com campeonatos de tiro ao prato. São experiências de vida
absolutamente radicais, experiências limite, para usar uma terminologia mais
filosófica, aquilo que sustenta as obras de um e de outro. Não é o bafo do
rancor nem o fátuo estrelato do exibicionista.
1 comentário:
Muito bom. Parabéns.
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