terça-feira, 8 de outubro de 2019

EXTREMAS, ESTREMAS E ESTRUME




  Já deu para perceber, durante o último Prós e Contras, aquilo que nos aguarda. André Ventura foi igual a si próprio, interrompendo, perturbando, armando-se em engraçado, poluindo, espalhando brasas. Será sempre difícil discutir com alguém assim, desde logo por não haver interesse na discussão. Faz tudo parte de um jogo, de um modo de jogar, que assenta na demagogia e no sensacionalismo. É a política do espectáculo, é pathos, a emoção sobrepondo-se à razão. Mas tentemos racionalizar um pouco. Eis o desafio.
   A primeira intervenção de André Ventura consistiu na já costumeira comparação entre a extrema-direita e aquilo a que ele chama extrema-esquerda, referindo-se a partidos como a CDU, o BE e o Livre. A táctica é óbvia, começa por se colocar no lugar de anjo que toda a gente considera ameaçador, típico lobo disfarçado com pele de cordeiro. O próprio já disse que «devemos deixar cair estes rótulos de extrema-direita e extrema-esquerda, porque só afastam o eleitorado». Mas devemos mesmo?
   A postura de Ventura, que ao contrário do que alguns dizem não é parvo nenhum, tem dois propósitos:

1. poderá dizer que se o consideram uma ameaça, então é porque ele é anti-sistema, ou seja, quer acabar com tudo o que está mal no actual sistema e, por isso, ameaça os privilegiados do status quo, os instalados. Basicamente o que ele diz é: querem calar-nos, mas não vão conseguir. E diz isto falando, sem que ninguém o interrompa.
2. também retira proveito de um segundo modo. Comparando-se com partidos já tradicionais no sistema, ao colocar ao mesmo nível aquilo a que chama extrema-esquerda e aquilo a que outros chamam extrema-direita, pretende levar as pessoas a acreditar que tal como os da extrema-esquerda não comem criancinhas, também ele não está ali para as comer. Tenta, desse modo, afastar o medo que as pessoas possam sentir do seu discurso, retirando-lhe gravidade. O problema é que algumas das coisas que defende são mesmo muito graves e perigosas.

   Este tipo de argumentação é eficaz, nomeadamente numa sociedade que se deixou vencer pela espectacularidade e pelo sensacionalismo abdicando da cultura, da educação, do pensamento, da razão. É o tipo de discurso que vai ao encontro dos ódios e das fúrias que as pessoas expressam nas caixas de comentários de weblogs e sites, nos fóruns de discussão mediáticos, tipo antenas abertas, e que se disseminam hoje como vírus em ideias feitas, sínteses simplistas, cartazes e panfletos on-line que nenhum polígrafo conseguirá desacreditar, pois quem se convence de uma mentira dificilmente aceitará a verdade que a desmente. A mentira é mais confortável.
   Sublinhe-se, desde logo, esta contradição inicial: André Ventura diz-se anti-sistema comparando-se com partidos que ele critica por serem do sistema. Dito de outra forma, o que ele diz é: têm medo de mim porque eu sou anti-sistema, mas eu não sou mais nem menos extremista do que aqueles senhores da extrema-esquerda que não metem medo a ninguém. É tudo pathos, nada disto é logos. É tudo sensacionalismo, nada disto é razão. Se apelarmos à razão, teremos de ir às propostas e aos programas de uns e de outros. E é aí que encontraremos uma diferença básica entre os partidos que André Ventura diz serem de extrema-esquerda e o partido que ele representa.
   No seu programa, o Chega defende a eliminação do cargo de primeiro-ministro, a castração química de pedófilos, reduzir o número de deputados da Assembleia da República para uma centena, permitir a prisão perpétua, criar uma taxa única de IRS e extinguir o Ministério da Educação, ou seja, defende o fim dos serviços públicos na saúde e educação e quer o Presidente da República a chefiar o Governo, defende ainda a redução da emigração islâmica, sobretudo de países conhecidos pelo terrorismo. Falta elencá-los, talvez tenha surpresas.
   Portanto, enquanto a tal extrema-esquerda é pela inclusão, o Chega é pela exclusão. Os tais da extrema-esquerda não têm nos seus programas nenhuma proposta atentatória dos direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao passo que o Chega de André Ventura tem. Os tais partidos de extrema-esquerda respeitam os direitos humanos, o Chega de André Ventura não. Contra políticas inclusivas, o Chega propõe políticas segregacionistas, xenófobas, no caso da emigração islâmica, racistas, na perseguição a uma etnia em concreto. E esta é uma diferença básica que leva, de facto, a temer o crescimento de partidos como o Chega e a não sentir nenhuma ameaça aos nossos direitos mais básicos nos programas de CDU, BE e Livre.  
   Sei que esta discussão vai sempre parar à história do comunismo e depois a comparações com o nacional-socialismo alemão, etc, mas para já, evitando alongamentos desnecessários, fiquemo-nos por algumas coisas que o Chega de André Ventura diz, faz e propõe. É um esforço que temos de fazer para perceber o perigo real que determinado discurso político representa. É um esforço anterior à discussão ideológica académica.
   André Ventura ganha mediatismo como candidato autárquico apoiado por PSD e CDS, depois de uma entrevista em que resolveu atacar uma minoria altamente fragilizada na opinião pública, a minoria cigana. Pura táctica. André Ventura é inteligente, acabou o curso com média de 19 valores, doutorou-se, não é parvo nenhum, sabe que para ter acesso aos jornais e às televisões, para que a imprensa o mostre ao país, precisa de dizer algo que seja altamente popular. Ele é uma das figuras centrais da CMTV, o canal que os cafés de Norte a Sul do país têm permanentemente sintonizado. Ele sabe muito bem como chegar à opinião pública.
    Há um lado anedótico nesta história, a afirmação numa entrevista oferecida ao jornal Sol de que sentiu pela primeira vez que a comunidade cigana estava muito desintegrada quando verificou que os ciganos davam uma má imagem de Portugal para o estrangeiro. Porquê? Passo a citar: «Dá uma má imagem, por exemplo, ao vender produtos que não sei se são droga ou não mas que são apresentados como tal, na rua Augusta e em zonas de muito turismo». E assim se reduz a uma comunidade minoritária um dos mais lucrativos negócios internacionais. Os ciganos têm as costas largas.
   Ventura incrimina o suposto oportunismo dos ciganos, comunidade com imensas especificidades que, por continuar a resistir ao nosso modo de vida, não merece a simpatia da maioria das pessoas. Já foi desmontada várias vezes a mentira de André Ventura, que acusa a comunidade cigana de viver à custa de subsídios. Mas de nada valerá que a mesma seja desmontada, ela é assaz popular e tem uma força demagógica indelével junto dos portugueses. Repito e sublinho: demagógica. Este ataque directo a uma minoria étnica, na velha tradição do nacional-socialismo, colhe junto das pessoas, oferece de bandeja um bode expiatório para as frustrações nacionais. A verdade é que o custo que a comunidade cigana possa ter para o país, admitindo que só vivam de subsídios, o que é falso e ofensivo, em nada pode ser comparável ao custo que tem para o país os desmandos da banca (vide BES), a fuga de dinheiro para offshores (vide Panama Papers) ou a promiscuidade entre Estado e interesses económicos (vide caso Marquês). Mas estes assuntos são altamente complexos, é mais simples acusar os ciganos de viverem à custa do Estado como se isso, mesmo sendo falso, fosse a origem de todos os males.
   Este é o princípio, o começo, o pilar, esta é a táctica. O esquema está montado e tem sido altamente eficiente noutros países. Uns com a imigração islâmica, outros com os refugiados, outros com os indígenas, outros com os mexicanos, cada qual com o seu bode-expiatório vai facturando junto das massas um discurso de medo, ódio, repulsa, que não é novo e só a cultura, a educação, a informação podem ajudar a mitigar. É um discurso perigoso, verdadeiramente perigoso. Portanto, seria bom que estivéssemos todos preparados para ele. Estaremos?

4 comentários:

MJLF disse...

Belo texto Henrique. Acho que ninguém está preparado para o dr. ventura, vamos ter de nos preparar para a besta. saúde

hmbf disse...

Cabe-nos a vigilância. Saúde

Rogério de Marvila disse...

A excelente análise que peca pela exclusão da responsabilidade dos partidos ditos de "esquerda" no surgimento destes fenómenos populistas e proto-fascistas.
Por outro lado seria interessante investigas até que ponto esta canalha não foi financiada com dinheiros sionistas. Nem por acaso uma das "promessas" do programa destes fascistas é a implantação de uma Embaixada de Portugal em Jerusalém, a exemplo do fizeram Trump e Bolsonaro.

Anónimo disse...

Hum !!!! O lobo a querer vestir a pele de cordeiro... o seu discurso é patológicamente interessante.