segunda-feira, 14 de outubro de 2019

PROVEITOSA ILEGALIDADE




   À margem dos depósitos legais, eis que deparamos com duas traduções de poetas norte-americanos por cá praticamente desconhecidos. Há nomes por detrás destes esforços de divulgação e partilha. Ana Salomé (n. 1982) assina as Versões (Edições Rochedo, Maio de 2018) de Robert Duncan (n. 1919 – m. 1988), publicação de que terão sido feitos meros 20 exemplares. John Wieners (n. 1934 – m. 2002) aparece pela mão de Miguel Cardoso (n. 1976), numa recolha proveniente do livro The Hotel Wentley Poems (1958) acrescida de três dispersos e uma breve nota biográfica. Imprimiram-se 50 exemplares de Poemas do Hotel Wentley (Abril de 2019), editados por Nuno Moura no terceiro número de uma Colecção Particular que se pode considerar espécie de braço armado da já de si paralela Douda Correria. 
   Duncan e Wieners cruzaram-se algures no Black Mountain College em meados da década de 1950. Viveiro de poetas, o Black Mountain College acolheu nas suas salas Charles Olson, fundador da The Black Mountain Review e, com Robert Creeley, de uma escola de poesia frequentada por imensa gente que ficou associada aos movimentos vanguardistas daquele período. Foi nesse contexto que Olson publicou o famigerado ensaio Projective Verse, defendendo uma poética aberta à respiração do autor, na sua relação com o lugar e com a sua percepção desse lugar, garantindo ao poeta a “pauta e o compasso do músico” para que o leitor possa “vocalizar a linha” em silêncio ou em alta voz. Talvez não seja abusivo associar tais teses à então emergente relação da poesia com a música improvisada, acabando Robert Creeley por fazer a ponte entre Black Mountain e o movimento Beat de São Francisco. 
   Foi precisamente em São Francisco que Robert Duncan se tornou uma figura central da poesia norte-americana. Nascido em Oakland, recebeu da família adoptiva influências ocultistas que acabam por se reflectir nos seus poemas. Estudou em Berkeley, envolveu-se com os movimentos de esquerda, penetrou na vida boémia local, acabando por se juntar a uma comuna em Woodstock. Homossexual assumido, escreveu em 1944 o ensaio The Homosexual in Society. Em matéria de poesia, Selected Poems apareceu apenas em 1959 na City Lights de Lawrence Ferlinghetti. 
   Os quatro poemas traduzidos por Ana Salomé denotam a influência da cultura esotérica, confundindo-se neles a primeira pessoa do sujeito poético com uma segunda pessoa inspiradora de incerteza e perplexidade: «Que passageiro, que navegante / enfrenta as correntes que rodopiam em teu redor, / como se visse nessas profundezas o seu próprio espelho?» (p. 2). O diálogo constante com outros autores e obras alheias, aqui bem representado pelo poema Dois Dicta de William Blake, abre novos caminhos para uma poesia que parece edificar-se a partir de um projecto de reflexão acerca do lugar da poesia no campo de batalha onde se confrontam certas ideias de eternidade e a evidência do efémero. 
   Diferente no conteúdo, mas não necessariamente na forma, a poesia de John Wieners faz-se na relação com a efemeridade, parecendo por isso preferir a observação à reflexão. Natural de Milton, no Massachusetts, andou por Boston, Cambridge, São Francisco, Nova Iorque. Estreou-se em 1958 com The Hotel Wentley Poems, publicando posteriormente Ace of Pentacles (1964). Esteve internado em hospitais psiquiátricos, daí resultando Asylum Poems (1969). Envolveu-se em diversas causas sociais, quer na defesa dos direitos da comunidade gay, quer nos protestos contra a guerra do Vietname. 
   Frequentemente associado ao movimento Beat, os poemas de John Wieners são, como bem os sintetizou Miguel Cardoso, «líricos, perversos, reticentes, crus, eróticos, magoados, americanos, derrotados, delicados, esperançosos, frágeis». Neles sentimos a pulsação de uma América na qual o poeta mergulha sem defesas, percorrendo cidades, dedicando versos a quem com ele se vai cruzando, seja na rua, em galerias de arte ou em bares homossexuais. Quotidianos, os poemas de Wieners parecem respeitar a teses projectivas de Charles Olson, chegam-nos como um projéctil que atravessa espaço e tempo concretos, vividos, experienciados, para atingirem o coração de um país: «O poema / não nos mente. Deitamo-nos à sombra / da sua lei, vivos no glamour desta hora / com licença para entrar nos lugares sagrados / do seu povo escuro que carrega segredos / vidrados nos seus olhos e esconde palavras / debaixo dos céus das suas bocas» (s/p).
   Com estas duas publicações ligamos as margens, elas são pontes estreitas para um vasto campo inexplorado de poetas de outros tempos e de outras latitudes que assim nos  vão chegando com a beleza de um crime inofensivo. Em si mesmo, a edição destas pequenas publicações é gesto poético, proveitosa ilegalidade ao serviço de escassos leitores. 20 exemplares? 50 exemplares? Estão lançadas as sementes.

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