À margem dos depósitos legais, eis que deparamos com duas
traduções de poetas norte-americanos por cá praticamente desconhecidos. Há
nomes por detrás destes esforços de divulgação e partilha. Ana Salomé (n. 1982)
assina as Versões (Edições Rochedo, Maio de 2018) de Robert Duncan (n. 1919 –
m. 1988), publicação de que terão sido feitos meros 20 exemplares. John Wieners
(n. 1934 – m. 2002) aparece pela mão de Miguel Cardoso (n. 1976), numa recolha
proveniente do livro The Hotel Wentley Poems (1958) acrescida de três dispersos
e uma breve nota biográfica. Imprimiram-se 50 exemplares de Poemas do Hotel
Wentley (Abril de 2019), editados por Nuno Moura no terceiro número de uma
Colecção Particular que se pode considerar espécie de braço armado da já de
si paralela Douda Correria.
Duncan e Wieners cruzaram-se algures no Black Mountain
College em meados da década de 1950. Viveiro de poetas, o Black Mountain
College acolheu nas suas salas Charles Olson, fundador da The Black Mountain
Review e, com Robert Creeley, de uma escola de poesia frequentada por imensa
gente que ficou associada aos movimentos vanguardistas daquele período. Foi
nesse contexto que Olson publicou o famigerado ensaio Projective Verse,
defendendo uma poética aberta à respiração do autor, na sua relação com o lugar
e com a sua percepção desse lugar, garantindo ao poeta a “pauta e o compasso do
músico” para que o leitor possa “vocalizar a linha” em silêncio ou em alta voz.
Talvez não seja abusivo associar tais teses à então emergente relação da poesia
com a música improvisada, acabando Robert Creeley por fazer a ponte entre Black
Mountain e o movimento Beat de São Francisco.
Foi precisamente em São Francisco
que Robert Duncan se tornou uma figura central da poesia norte-americana.
Nascido em Oakland, recebeu da família adoptiva influências ocultistas
que acabam por se reflectir nos seus poemas. Estudou em Berkeley, envolveu-se com os movimentos de esquerda, penetrou na vida boémia local, acabando por se
juntar a uma comuna em Woodstock. Homossexual assumido, escreveu em 1944 o ensaio
The Homosexual in Society. Em matéria de poesia, Selected Poems apareceu apenas
em 1959 na City Lights de Lawrence Ferlinghetti.
Os quatro poemas traduzidos
por Ana Salomé denotam a influência da cultura esotérica, confundindo-se neles
a primeira pessoa do sujeito poético com uma segunda pessoa inspiradora de incerteza
e perplexidade: «Que passageiro, que navegante / enfrenta as correntes que
rodopiam em teu redor, / como se visse nessas profundezas o seu próprio
espelho?» (p. 2). O diálogo constante com outros autores e obras alheias, aqui
bem representado pelo poema Dois Dicta de William Blake, abre novos caminhos
para uma poesia que parece edificar-se a partir de um projecto de reflexão acerca
do lugar da poesia no campo de batalha onde se confrontam certas ideias de
eternidade e a evidência do efémero.
Diferente no conteúdo, mas não
necessariamente na forma, a poesia de John Wieners faz-se na relação com a
efemeridade, parecendo por isso preferir a observação à reflexão. Natural de
Milton, no Massachusetts, andou por Boston, Cambridge, São Francisco, Nova
Iorque. Estreou-se em 1958 com The Hotel Wentley Poems, publicando posteriormente
Ace of Pentacles (1964). Esteve internado em hospitais psiquiátricos, daí
resultando Asylum Poems (1969). Envolveu-se em diversas causas sociais,
quer na defesa dos direitos da comunidade gay, quer nos protestos contra a
guerra do Vietname.
Frequentemente associado ao movimento Beat, os poemas de
John Wieners são, como bem os sintetizou Miguel Cardoso, «líricos, perversos,
reticentes, crus, eróticos, magoados, americanos, derrotados, delicados, esperançosos,
frágeis». Neles sentimos a pulsação de uma América na qual o poeta mergulha sem
defesas, percorrendo cidades, dedicando versos a quem com ele se vai cruzando,
seja na rua, em galerias de arte ou em bares homossexuais. Quotidianos, os poemas de Wieners parecem respeitar a teses projectivas de Charles Olson, chegam-nos como
um projéctil que atravessa espaço e tempo concretos, vividos,
experienciados, para atingirem o coração de um país: «O poema / não nos mente.
Deitamo-nos à sombra / da sua lei, vivos no glamour desta hora / com licença
para entrar nos lugares sagrados / do seu povo escuro que carrega segredos /
vidrados nos seus olhos e esconde palavras / debaixo dos céus das suas bocas»
(s/p).
Com estas duas publicações ligamos as margens, elas são pontes estreitas
para um vasto campo inexplorado de poetas de outros tempos e de outras
latitudes que assim nos vão chegando com a beleza de um crime inofensivo. Em si mesmo, a edição destas pequenas publicações é gesto poético, proveitosa ilegalidade ao serviço de escassos leitores. 20 exemplares? 50 exemplares? Estão lançadas as sementes.
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