sexta-feira, 11 de outubro de 2019

FUMO, VENTO, E TODOS OS DIAS A VIDA



Um homem não faz mais do que passar pela vida, passa e ignora, passa e é abatido, devastado, por quanto o rodeia manuseia a ilusão: mas nada manuseia, nada, tudo é incerto como a chama de um fósforo, o percurso do relâmpago que incendeia as trevas, a gota de sangue com que certa vez nos deparamos na curva do caminho, mas não sabemos a quem pertence, ao que pertence, se ao pastor, à ovelha, se ao magarefe que todas as manhãs faz o trajecto que passa por esse caminho, se ao boi possante que ele matou na herdade vizinha.
   Há um mistério, um mistério do tamanho do mundo, um considerável mistério de tudo se distribuir pela totalidade de tudo, sem dulcificação no atroz desafio, o atalho que se presume poder tomar. E nunca há atalho, não há caminho: todas as voltas que a vida nos troca entroncam nesse mistério indissolúvel de nada mais haver além da circunstância de estarmos continuamente a morrer, absolutamente entregues à solidão, antecipadamente vencidos por qualquer que seja a ideia de vitória que nos sonhemos ou sonhemos para os outros. Fumo, vento, e todos os dias a vida. E os segundos passam inexoráveis, sem remissão, transformam-nos no pouco em que nos tornamos, no nada que nos sitia, na perpétua ausência que nos antecipa e devasta, sem mais remédio de se ir connosco desvanecendo a ira ou a alegria inicial, o comprazimento, o desespero. No horizonte sem fim a tremulina sabe alguma coisa do que aconteceu, delapida a paisagem subtilmente e só posso pensar que alguma coisa sabe, irreparável, da partida e o lugar a que chegaste quando o meu e o teu regresso transformaram o nosso encontro em desencontro.

Amadeu Baptista, in Estrela de Bizâncio, Prémio de Poesia e Ficção de Almada - 2005, Livraria Livrododia, 2010, pp. 50-51.

Sem comentários: