sábado, 2 de novembro de 2019

ORDEM N.º 2 AO EXÉRCITO DA ARTE


É a vós —
barítonos bem alimentados —
que desde Adão
até hoje
comoveis as espeluncas — a que chamam teatros —
com as árias dos Romeus, árias das Julietas.

É a vós —
artistas-pintores,
gordos como cavalos
ornato relinchante e devorador da Rússia,
acachapados no fundo dos estúdios,
a aperfeiçoar constantemente
florinhas e engodos.

É a vós —
escondidos à sombra de místicos folhetos,
arando com mil rugas vossas frontes —
pequenos futuristas,
pequenos imaginistas,
pequenos acmeístas,
embaraçados entre a teia das rimas.

É a vós —
que em mechas hirsutas tendes transformado
vossos cabelos bem penteados,
e o verniz dos sapatos em tamancos,
«prolecultistas»
que remendais
o fraque desbotado de Puchkine.

É a vós —
bailarinos, tocadores de trompete,
que vos entregais abertamente,
ou calmamente pescais,
e imaginais o futuro
como uma academia imensa.
É a vós que o digo,
eu —
genial ou não genial,
que abandonei a quinquilharia da arte
e trabalhei na Rosta,
eu vo-lo digo —
antes que vos expulsem à coronhada.
Deixem-se disso!

Deixem-se disso!
Esqueçam,
ponham de lado
rimas,
romances,
roseiras em flor,
e todas as outras «melrancolias»
dos arsenais das artes.

A quem interessa que
«— Ah, pobre criança!
Como ela a amava
e como era infeliz...»?
Hoje
necessitamos de mestres
e não cabeludos pregadores.
Oiçam-nas!
As locomotivas gemem,
sopram pelas fendas, pelo chão:
«Dêem-nos o carvão do Don!
Serralheiros,
mecânicos, ao Depósito!»

Em cada embocadura de rio
vemos os barcos deitados,
um buraco no flanco, gritarem nas docas:
«Dêem-nos a nafta de Baku!»

Enquanto nos perdemos em querelas vãs,
buscando não sei que secreto sentido,
atravessa as coisas um enorme soluço:
«Dêem-nos formas novas!»

Já não há imbecis
para,
multidão boquiaberta,
esperar que caia dos lábios do «mestre» uma palavra.
Camaradas,
inventai uma arte nova
que arranque
a República da lama.

(1922)


Vladimiro Maiakowski, in Autobiografia e Poemas,s/t,  Editorial Presença, s/d, pp. 62-64.

4 comentários:

d'ama disse...

Grande tradução de Carlos Grifo. Acho que Maiakovski excita os tradutores, que nos deixam bem servidos (também Adolfo L. Canibal). "Melrancolia" é um achado. O resto é uma grande bofetada em todos nós.

d'ama disse...

digo eu, que não sei russo, mas assobia-se lindamente. Bofetadas ao ar e ao próprio, também

hmbf disse...

Também anotei Melrancolia. O livro não refere o tradutor. :-( Obrigado.

d'ama disse...

oops se calhar não é ele. Eu achei que devia haver uma menção ao inventor de "Melrancolia", fui googlar, e apareceu-me Carlos Grifo (que eu penso dever ser Carlos Grifo Babo, também tradutor de uma curiosa Alice). Desculpa a pespinetice.