quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

O PEDIDO DE EMPREGO



   Havia, não sei se ainda há, um programa chamado Shark Tank, com versão portuguesa traduzida como Lago dos Tubarões. O peixe graúdo, temível, era composto por certo tipo de gente a quem eufemisticamente se dá o nome de “investidores”, malta com pilim a quem o peixe miúdo submete reverencialmente as suas ideias na esperança de poder vir a crescer, adquirindo no futuro, quem sabe, o estatuto de tubarão. É o mundo do empreendedorismo na sua versão soft, para entreter famílias depois da telenovela. Chamar “lago” ao habitat dos tubarões é só parvo, era preferível a literalidade do termo tanque ou aquário ou piscina ou reservatório. 
   Kevin O’Leary, estrela do programa, pelo estilo implacável, dito pragmático, muito à maneira do que se espera de um magnata, competitivo, agressivo ou, como agora se diz, impactante, ficou conhecido no meio como Mr. Wonderful, apesar do discurso que qualquer humilde fã do Papa Francisco consideraria abjecto não fossem as necessidades. “Sou o teu melhor amigo, os teus sentimentos não me interessam”, “se está furioso, mate”, são algumas das máximas atribuídas a este aparentemente bem-sucedido homem de negócios. Diríamos que o mundo está cheio de homens destes, não fôssemos desmentidos pelas estatísticas. 
   Os 26 mais ricos do mundo têm tanto dinheiro quanto a metade mais pobre da população mundial, o que nos pode levar a pensar nos tubarões como uma espécie em vias de extinção. Na realidade, há vários tipos de tubarões. São cerca de 375 espécies, 88 das quais, curiosamente, nos mares do Brasil, variando de tamanho sem nunca largarem o topo da cadeia alimentar. No mundo dos homens, o peixe miúdo é a metade mais pobre da população mundial que serve de alimento aos tais 26. A desproporção devia chocar toda a gente preocupada com desigualdades sociais, mas nas sociedades de espectáculo promovidas pelo capitalismo selvagem aqueles 26 são uma espécie de luz que maravilha os idealistas, que fascina os lunáticos, que seduz os sonhadores, que garante o sucesso dos tais Mr. Wonderful, reproduzindo em massa vidas que alternam entre a absoluta escravidão, nos países subdesenvolvidos, a servidão, nos países em vias de desenvolvimento, e uma submissão voluntarista, nos países civilizados (o termo não é meu). 
   O dramaturgo Michel Vinaver topou cedo a mecânica das coisas, não apenas através de uma capacidade reflexiva de tipo académico, mas fazendo uso daquilo a que em ciências sociais e humanas se dá o nome de observação participante. Nascido em 1927, formou-se em literatura na Sorbonne. Mas, em 1953, entra como estagiário para a Gillette, acabando como chefe de serviços administrativos. A experiência como alto quadro de uma multinacional ofereceu-lhe uma perspectiva clarividente sobre matérias que outros apanham apenas pela rama. A peça “O Pedido de Emprego” é uma de várias que escreveu, dedicadas a estes assuntos da sobrevivência na selva dos homens. Assinala agora a estreia de António Parra como encenador. 
   Depois da estreia no Teatro da Rainha, a trupe segue em digressão pelo Teatro das Beiras já no próximo dia 10 de Janeiro. É mais uma oportunidade para assistir a um competente trabalho de encenação, em torno de um texto que adivinhamos altamente desafiante de colocar em cena. Nuno Machado é Fage, quarentão em busca de uma nova oportunidade de trabalho. José Carlos Faria, na personagem de Wallace, é o técnico de recursos humanos que submete Fage a interrogatório. Depois há Luísa, interpretada por Inês Fouto, mulher de Fage, e Mafalda Taveira no papel de Natália, a filha adolescente de Fage e Luísa, perdida de amores por um jovem revolucionário que a engravida nos intervalos da formação em anedotário progressista. A teia de diálogos cruza tempos e situações a um ritmo alucinante, levando a pensar tanto no cubismo, enquanto capacidade de multiplicar perspectivas num só enquadramento, como em algo muito mais prosaico, como seja a impressão de frenesim social que faz da vida mero instante. 
   Interessa-me Fage, encurralado entre as obrigações familiares e os deveres profissionais, esforçando-se por causar boa impressão àqueles que sabe serem os seus algozes, perdido num labirinto de vozes disparadas de todos os lados, sem saber para onde se voltar se quiser encontrar a saída. Imagino-o assim mesmo, dentro de um labirinto (peixinho às voltas no aquário?), a tentar escutar quem o chama. Chegam-lhe ecos de todos os lados, ele concentra-se, tenta perceber-lhes a origem, quer chegar ao corpo que emite o chamamento, porventura para ser abraçado ou abraçá-lo, gestos humanos luxuosos numa sociedade cujo princípio e propósito é desumanizar. Porquê? Para quê? Ora, para garantir o estatuto de wonderful àqueles cujo fascínio exercido pela maioria procura justificar uma vida, esse instante efémero, de servilismo, sem sequer deixar hipótese de nos intervalos da servidão a considerarmos desperdiçada.
   Para mim, depois de 11 anos ao serviço de uma empresa cuja mecânica consiste em explorar à exaustão as capacidades dos serventes, pagando-lhes pelo mínimo o que se propagandeia como máximo, “O Pedido de Emprego” retrata já não apenas a descartabilidade da pessoa humana em contexto laboral, mas como somos levados a desperdiçar a vida dando de comer aos tubarões a nossa própria consciência. Olho para Fage e para a sua família, olho-o e penso se é justo acusá-lo de desperdiçar a vida. Que alternativas lhe restavam? Em nome de quê, o desperdício? Talvez em nome dos chamados pequenos luxos que nos fazem enganar o tempo, julgando valer a pena morrer de velhos sem um único ano das nossas vidas ter sido verdadeiramente vivido, luxos esses tão bem ilustrados pela gravata que Luísa engoma, pelos sapatos que engraxa. Num mundo assim estruturado, que futuro sobra para a criança no ventre de Natália? Talvez seja preferível não responder, deixemos em aberto a possibilidade de vir a ser ela a escolhê-lo. Se for essa a vontade da progenitora... e de quem lhe dê emprego?

Sem comentários: