ainda
hei-de assistir ao meu funeral
juro-vos
e
as auxiliares riam-se
e
pediam para me calar
que
em vez de estar com palermices
mais
valia chegar-me à janela
e
desfrutar das vistas
o
parque
as
crianças
se
já se viu tão cálido Outono
impossível
aquietar-me
imaginem-se
transformados em marionetas
com
mãos por dentro
a
conduzirem os gestos
a
remexerem
o
peito a respirar encostado às mãos
dedos
que seguram no vazio
um
coração
as
auxiliares alinhariam
mesmo
atrasadas
cheiinhas
de pressa
já
ouvia a gargalhada a ecoar no corredor
e
depois da higiene e da limpeza do quarto
atiravam-me
beijos
consolavam-me
disto
de
ser nada
não
me perdia em detalhes
a
matéria fulcral consistia no cumprimento da promessa
eu
no meu funeral
tinha-vos
jurado
e
elas riam-se
ainda
as ouvia no corredor
já
sentado no muro
de
cigarro aceso
aguardando
a chegada do cortejo
eu
à frente muito adiantado
para
não me ver dentro da terra
que
custava imaginar-me morto
levar
com os torrões húmidos por cima
muito
mais agradável sentir
as
mãos por dentro de mim a disporem
e
eu a obedecer
flexível
reversível
acreditar
depende
tanto da nossa vontade
não
sabia como é que se acredita
erguia-me
de supetão
batia
as palmas
informava
que em breve teria de me ausentar
não
custa
tinha
já estado tantas vezes no meu funeral
repetira
a minha vida tantas vezes
que
sabia como se processava
reparem
que disponho dos dias todos
um
dia mais longo
uma
tarde sem fim
a
vida a escavar-me
vou
e volto já
acreditem
que não custa
e
dito isto
sem
saber se procedia ao anúncio derradeiro
reservando
à cautela um resto de fôlego para o regresso
saudava
as auxiliares
virava-me
para o outro lado
fechava
os olhos
que
um dos homens da agência deixara abertos
por
descuido ou por crença
e
expirava
José Ricardo Nunes, in Di dispensa dai fiori, volta d'mar, Janeiro de 2020, pp. 49-51.
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