quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

UM POEMA DE JOSÉ RICARDO NUNES




ainda hei-de assistir ao meu funeral
juro-vos
e as auxiliares riam-se
e pediam para me calar
que em vez de estar com palermices
mais valia chegar-me à janela
e desfrutar das vistas
o parque
as crianças
se já se viu tão cálido Outono

impossível aquietar-me
imaginem-se transformados em marionetas
com mãos por dentro
a conduzirem os gestos
a remexerem
o peito a respirar encostado às mãos
dedos que seguram no vazio
um coração

as auxiliares alinhariam
mesmo atrasadas
cheiinhas de pressa
já ouvia a gargalhada a ecoar no corredor

e depois da higiene e da limpeza do quarto
atiravam-me beijos
consolavam-me disto
de ser nada

não me perdia em detalhes
a matéria fulcral consistia no cumprimento da promessa
eu no meu funeral
tinha-vos jurado
e elas riam-se

ainda as ouvia no corredor
já sentado no muro
de cigarro aceso
aguardando a chegada do cortejo
eu à frente muito adiantado
para não me ver dentro da terra
que custava imaginar-me morto
levar com os torrões húmidos por cima
muito mais agradável sentir
as mãos por dentro de mim a disporem
e eu a obedecer
flexível reversível

acreditar
depende tanto da nossa vontade
não sabia como é que se acredita

erguia-me de supetão
batia as palmas
informava que em breve teria de me ausentar

não custa
tinha já estado tantas vezes no meu funeral
repetira a minha vida tantas vezes
que sabia como se processava

reparem que disponho dos dias todos
um dia mais longo
uma tarde sem fim
a vida a escavar-me
vou e volto já
acreditem que não custa

e dito isto
sem saber se procedia ao anúncio derradeiro
reservando à cautela um resto de fôlego para o regresso
saudava as auxiliares
virava-me para o outro lado
fechava os olhos
que um dos homens da agência deixara abertos
por descuido ou por crença
e expirava



José Ricardo Nunes, in Di dispensa dai fiori, volta d'mar, Janeiro de 2020, pp. 49-51.

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