domingo, 2 de fevereiro de 2020

FOTOGRAFAR CONTRA O VENTO


No exórdio ao seu mais recente romance, “Fotografar Contra o Vento” (Editora Exclamação, Outubro de 2019), António Cabrita (n. 1959) revela ter-se inspirado em José “Vultus” Sequeira para a construção de Tomás Gonzaga, figura central de uma história com contornos quixotescos passada numa Península Ibérica contemporânea. Tal como Sequeira, o “herói” Gonzaga enceta uma peregrinação até à capital espanhola com o intuito de aí tourear na catedral das praças de toiros. Segue a butes vestido a rigor, “trajado de luces”, com a indumentária de toureiro atraindo atenções pelo caminho. O tema da tourada, como é sabido, presta-se hoje a inumeráveis controvérsias, não sendo dos mais apelativos junto de um público leitor que tenha das arenas a imagem de uma câmara de tortura. Por outro lado, esse lugar onde se faz espectáculo de um possível confronto entre inteligência e força bruta resiste, de algum modo, como metáfora de uma encenação dos conflitos que contrapõem o Homem à Natureza. Tomás Gonzaga tem um sonho e isso deve ser respeitado, mais ainda num tempo em que as luzes do pragmatismo forçam a vigília impedindo a utopia. A certa altura ouvimo-lo dizer acerca de si mesmo: «Fui sempre um pouco fora do mundo. Contudo, dantes vivia fora de mim, na realidade dos outros, agora apalpo a minha realidade. Os sonhos têm de ser agarrados pelos colarinhos para se tornarem matéria concreta, e urgem, ao contrário da acção política, que vive a conta-gotas» (p. 207). Mais do que qualquer extrapolação acerca de temáticas fracturantes (como agora se diz), importa neste romance salvaguardar o direito humano ao sonho e à utopia. De resto, o palco em que a aventura decorre e se desenrola produz esse efeito metonímico de os homens surgirem, a espaços, desprovidos de humanidade, transformados em bestas que apenas o sonho, o devaneio, a fantasia, a utopia poderão de algum modo restaurar. É assim numa praça de touros como numa casa de alterne. Quem mais sente as bandarilhas no cachaço ao longo desta narrativa são os homens e as mulheres a quem foi roubada a possibilidade de sonhar, traídos por uma realidade impiedosa que as televisões se encarregam, com suas metodologias de showbiz, de transformar em ficção. Não poderá ser esta uma das lições a retirar de um Quixote actualizado? Se a realidade mais dura e cruel se encarrega de desmentir a fantasia, não é senão pela fantasia que conseguimos a espaços libertar-nos da dureza e da crueldade de um real onde cabem todas as formas de terror. Neste sentido, Tomás Gonzaga é uma espécie de sonho ambulante que vai sendo colhido pela crueldade ao longo da peregrinação, é o toureiro no lugar do touro, porque no seu interior ainda arde o pavio de uma utopia que o mundo à sua volta já só conspurca com desdém. Neste sentido, repito, Tomás Gonzaga é uma espécie de poeta. Não lhe é indiferente o desenrolar político do mundo, mas consegue distanciar-se o suficiente para não acabar ou estendido na arena ou no lugar de quem aplaude cumplicemente os crimes dos homens. Cosmo, com quem se cruza a meio da peregrinação, carrega aos ombros os males do mundo (destino antigo). É-nos inicialmente apresentado como vagabundo, mas logo um passado de jornalista de guerra lhe confere a dimensão que faltava à fantasia. Cosmo conhece de perto o olhar da besta, tocou-lhe no corno e foi por um triz que escapou a uma investida fatal. Cosmo tem a cultura e o saber livrescos, viajou, conhece o mundo, isto é, o Inferno, por nele ter tido papel actuante. Cosmo sabe a que cheira a violência, sabe a que sabe a barbárie, conhece as regras dos “jogos de crueldade”, sabe que o mundo é uma gigantesca praça de touros onde homens matam homens para entretenimento de homens. Não é um contraponto a Tomás Gonzaga, mas antes um complemento: «É preciso abrir as janelas e deixar que as correntes façam entrar em casa o que a trivialidade dos tempos descuidou, a coragem. Percebes, Tomás, que não acredite em ideias gerais, só acredito em pessoas, no furor e na vulnerabilidade com que alguns se superam?» (p. 230). O vigor efabulatório de António Cabrita não pára de nos surpreender ao longo de quase trezentas páginas habitadas por lugares e personagens de um universo altamente verosímil, alicerçado num facto histórico que, curiosamente, é o que se nos apresenta como mais improvável nesta narrativa de cruzamentos diversos e encontros inesperados. Podem já não haver heróis na literatura portuguesa, mas em estando ela carente de um anti-herói à medida ei-lo que se nos apresenta de corpo inteiro e trajado a rigor. Chama-se Tomás.

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