domingo, 1 de março de 2020

UM POEMA DE AURÉLIO PORTO

BALÃO MINGUANTE

Três décadas.
Trinta por cento destruímos
de tudo quanto vive.
Valeu a pena. Temos roupa em abundância
em marcas de prestígio,
estradas confortáveis e rápidas que nos levam
de um asfalto a outro asfalto,
queimamos a pele e o melanoma nas melhores praias,
nos melhores hotéis.
O mundo ainda belo que algures resta não nos escapa.
A ele acedemos voando pelos ares a baixo preço
e isentamos o querosene de obrigações
para que os mais recuados risortes possam criar valor,
matar a fome de dividendos
enquanto alhures se aprofunda a fome de grão e de pão.
Neste melhor dos mundos,
a vida diversa vai encolhendo,
balão furado pela imprevidente agulha
que o encarquilha.
O balão onde voamos de um nada a outro nada,
deixando na esteira, repletos, os centros onde tudo se compra
sob o néon resplandecente.

Aurélio Porto, in Safra do Regresso, Edições Sempre-em-Pé, Setembro de 2011, p. 19.

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