segunda-feira, 11 de maio de 2020

UM POEMA DE MIGUEL MARTINS


O cinto entra pelo lado esquerdo, atravessa as presilhas,
com cuidado, para que não escape nenhuma, reencontra,
por fim, a mão direita, no lado que é o desta, e a fivela
cumpre a sua função — gestos milhares de vezes repetidos,
mas menos que o movimento que leva o copo à boca,
seja a sede sã, de nos darmos às lidas,
ou mais sã ainda, constatar derrotado
de que andamos para aqui ao largo de nós mesmos.

Porém, as mãos, ilustres detentoras de uma vontade própria,
ousaria dizer um pensamento, teimam nesses gestos,
alheias a qualquer filosofia que possamos engendrar nas horas vagas.

Era já tempo de lhes darmos esse valor que é seu,
de agradecer às mãos não pedirem alvitre
ao tocarem a cara de um amor adiado.


Miguel Martins, in O Caçador Esquimó, Fahrenheit 451, Agosto de 2017, p. 15.

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