A imagem é de Ricardo Oliveira e foi publicada no El País
com a legenda que a seguir se reproduz: «Indígenas com máscaras navegam pelo
rio Ariaú, a 80 quilómetros de Manaus». É uma imagem poderosa, ainda mais se
nos lembrarmos de que há séculos os vírus do mundo civilizado serviram para
dizimar civilizações ameríndias. Novamente sob ameaça de uma noção de progresso
que já não lhes é estranha, protegem-se com máscaras no meio da selva onde sempre
viveram. Aquilo a que alguns autores chamam de “colapso sócio-ecológico” encontra
nesta imagem uma representação eficaz. Vivemos dias tenebrosos, enclausurados
nas nossas próprias casas a olhar para o mundo através de um manancial de
ferramentas aparentemente indispensáveis no novo mundo das tecnologias.
Estes sobreviventes de um velho mundo outrora chamado de
novo espelham como ninguém a nossa própria desgraça (falência?), os paradoxos em que nos
deixámos enredar e a teia de contradições em que vamos sobrevivendo como
insectos estrebuchantes. A mais evidente de todas é não darmos conta de que as
nossas preocupações ambientais e ecológicas, todas elas legítimas e saudáveis, manifestam-se
maioritariamente através de veículos eles mesmos devastadores do meio ambiente. Exemplo
paradigmático de grosseira contradição é a exploração de metais raros
essenciais ao fabrico de diversas componentes das nossas ferramentas, sejam
elas um smartphone, um iPhone, um tablet ou um simples computador. Li algures
que a China é um dos principais fornecedores mundiais deste tipo de metais, o
que não pode deixar de fazer pensar nas consequências ambientais que a sua
extracção acarreta e nas possíveis relações que possam ser estabelecidas entre
esta actividade industrial ao serviço da tecnologia e o aparecimento de vírus que levam a que por todo o lado
tenhamos de andar com máscara no rosto, luvas nas mãos, gel desinfectante no
bolso e distância social em mente.
Que mundo é este para que vamos sendo empurrados como os
cegos de Pieter Bruegel? Em “A Matéria Escura e outros poemas”
(Assírio & Alvim, Março de 2020), de Jorge Sousa Braga (n. 1957), não temos
uma resposta a esta pergunta, nem era suposto que tivéssemos, mas
encontramos vários poemas onde as mesmas preocupações são exprimidas. No
poema-sequência que oferece título ao conjunto contrapõe-se a vastidão do
universo à pequenez da humanidade, interrogando a possibilidade de um sentido
para a vida onde nada parece fazer sentido e tudo surge relativizado pelas
escalas com que pretendamos medir o nosso lugar no mundo: «Hoje
acordei com vontade de dar uma volta à Via Láctea é pena que para dar essa volta sejam
necessárias umas centenas de milhões de anos» (p. 10). O registo relativista
parte de um princípio presente na poesia do autor desde a primeira hora, o da “desimportantização”, desde logo começando pela própria poesia.
Enraizado desde cedo num tipo de reflexão que encontramos
no taoísmo e no budismo, praticando amiúde uma poesia devedora de formas orientais
como o haiku, e usando linguagem clara, límpida, simples, Jorge Sousa Braga não
abdica da ironia e até de um certo humorismo muito seu na abordagem de questões
actuais tais como a violência dos homens exercida sobre os homens, a
transformação da paisagem ou as consequências ecológicas e ambientais da acção
humana no planeta. Pelo meio, um poema que podemos dizer político (não o serão
todos, de certo modo?) lembra-nos como a actualidade pode misturar-se nos versos sem os fixar num tempo histórico específico, tal como a imagem supra nos leva a
pensar em factos de um passado histórico que julgávamos extinto mas tudo aponta
para que se perpetue até extintos estarmos nós:
SEGUNDO A MOSSACK
1.
Segundo a Mossack
a
Goldeneye controlava
a
Try-Vin Holdings
de Malta que por sua
vez detinha a Valco
sediada nas Ilhas Virgens
bem como 90% da
empresa Cidade do Porto —
Investimentos Imobiliários
tendo comprado
50% da empresa
Proinvest com offshores
nas Bahamas e no
Delawere nas Ilhas Virgens
e em Malta Eras
também
dona da SAG que possuía
a gestora de activos
GFE…
2.
Será que os fundos abutre
também são enfunados
pelo vento?
Em nota final refere-se que notícias de jornal estiveram
na origem de alguns poemas do livro, processo que não é novo e até encontrámos
recentemente num livro de Rui Almeida. Talvez não tenha relevância, por certo
não pretenderá apontar um caminho, mas não deixa de ser significativo que em dois
livros tão próximos vislumbremos em dois poetas de gerações distintas, embora contemporâneos,
uma ligação tão directa da poesia à realidade histórica e à actualidade social
e política. É verdade que em “A Matéria Escura” isso sucede a partir de uma
reflexão abrangente sobre o sentido da vida, o lugar do homem no mundo, a
sua interacção com a natureza numa migalha de planeta. Mas também não é mentira que muitas vezes procuraram os homens refúgio
nas estrelas quando se desinteressaram das coordenadas cruéis na terra. Seja
por que razão for, é mais um apontamento sobre o sentimento de perdição e o desalento
que vêm pairando no ar, como poeira tóxica, deste início de século.
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