O ASSEIO
Estremecendo, o nariz saltou da linha férrea e começou a andar por entre as traves de madeira e o cascalho. Encontrou um pé, o direito, parou, rodeou-o e prosseguiu. Um pouco mais adiante, um braço estava atravessado sobre a guia de ferro. Pulou-lhe por cima e avançou.
A dois passos, viu o tronco. Sempre a fungar, o nariz avistou, um pouco mais à frente, a cabeça. Contornou-a e seguiu.
Ali estava, completa, a perna direita. Reconheceu-a imediatamente e nem sequer parou. Não era aquela a perna que lhe interessava. Mas a outra devia estar perto.
Estava, de facto.
Cortada em duas, mas ainda unida, a perna esquerda jazia, encostada a um pequeno arbusto. O nariz correu, entrou na algibeira, tirou o lenço e assoou-se com certo estrondo.
Voltou a meter o lenço no bolso das calças, deu uma breve corrida e foi colocar-se, o melhor que pôde, no seu lugar na cabeça.
Agora, sim, sentia-se suficientemente limpo para poder integrar o cadáver.
Orlando Neves, in A Condecoração, colecção fantástico n.º 7, Ediçoes Rolim, Novembro de 1984, p. 25.
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