segunda-feira, 1 de junho de 2020

UM TEXTO DE MARIA VELHO DA COSTA



EM HONRA E LÁSTIMA DE PEDRO E PAULO, PASOLINI

   Esses dois olhos, que de tão manso e pacientes, sem gravidade alguma para o que do sexo ou morte é irrelevante, bem faziam para cumprir pertença do terceiro — abrir-se para obrar ou receber. Tudo por aqui como anjo de asas bem podadas. Príncipes senhores viscondes sempre lamberam o belo como se ele fosse de per si, ou o horrendo. Tu passavas a vista pelo rude ou esplendor e era todo um teorema da pouquidão das pequenas rugas, estertores, milagres mesmos, ruídos e odores com som do corpo. Suas suavidades e amores sós ao olho inadmissível, vendo. Mexeste em tudo o que sagrámos com uma só virtude — as mãos com barro e unhas de cavar. Mesmo o furar dos olhos e da mãe te era amena matéria. Tinham de fazer ao menos o fim grandiloquente, feito diverso, trágico legível, porque isto está tudo ainda muito ao seu princípio. Tinhas não saber o que fazias.
   Pudera eu o grande plano disso, punha-te um sorriso sem cupidez ou malícia alguma debaixo da cabeça esmagada pela necessária violência, a tua, a grosseira e finíssima inocência que há-de virar montanhas, pequenezes, a ardente câmara lenta.

Maria Velho da Costa, in Experiência de Liberdade - Antologia de textos publicados no suplemento «Artes e Letras» do Diário de Notícias de Maio a Novembro de 1975, com introdução e organização de E. M. de Melo e Castro, Diabril, Maio de 1976, p. 303.

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