quarta-feira, 8 de julho de 2020

DISCURSO SOBRE O FILHO-DA-PUTA




   Acreditando que em 1977 era diferente o mundo, ficaríamos algo decepcionados ao constatar quão mesmo, idêntico, semelhante, repetitiva e monotonamente previsível é hoje esse dissemelhante que julgávamos para sempre enterrado mas se perpetua como um vírus impossível de erradicar. Apetece recuperar o célebre dito do unionista Manuel de Brito Camacho, que há coisa de um século resumiu de modo eficaz o curso da História: «As moscas mudam mas a merda é a mesma.» Os vícios humanos são universais, acompanham-nos como parasitas, muito provavelmente desde que para eles inventámos a palavra vício. Mas nem tanto se exigia, já que intrínseco ao homem é a sua bestialidade. “Superação”, ouvimos a certa altura, como um eco vindo dos antigos mandamentos que ordenaram controlar a animalidade exercendo sobre a natureza o domínio da razão. Os resultados estão à vista.
   Talvez tenha sido por silogística similar que Alberto Pimenta se encerrou numa jaula do Jardim Zoológico de Lisboa originalmente pensada para albergar símios. O happening deu que falar, acabando o poeta marcado com o ferro da inconveniência por uma Academia mais vocacionada para o comodismo reverencial do “sim senhor”. Não queremos cá macacos, disse o director. E Pimenta ficou no desemprego. Passaram 43 anos sobre o feito e sobre a primeira edição do “Discurso Sobre o Filho-da-Puta”, reflexão cartesiana acerca de um certo tipo de ser (ou de se ser) que os dicionários excluem, preferindo a versão eufemística filho da mãe, mas a vida concreta se encarrega de reproduzir ad nauseam. Escusado será um périplo pela imprensa diária para que fique provada e comprovada a tese, bastando para tal que em casa existam espelhos onde possamos ver reflectidos os vícios que ou nos conspurcam ou nos derrotam.
   Há um preço a pagar pela liberdade de pensamento, por essa maldita ousadia de olharmos para nós próprios com aquele espírito ameaçador da idiolatria tão cara ao poder. Este prefere erguer estátuas, disseminando por ruas, praças e avenidas a toponímia dos seus heróis sem que por debaixo do nome surja uma referência, por mínima que fosse, aos crimes de que ninguém está livre de cometer. Afinal somos humanos. Nisto, os gregos  antigos eram mais honestos (ia dizer justos) do que nós temos sido. Eram deuses, precisamente, por neles haver o reconhecimento da maldade, ao passo que nós insistimos nesta ilusão de santidade com que idealizamos paraísos na terra e glorificamos pulhas com cara de anjo. Daí também o puritanismo com que os órgãos oficiais, do Estado, pagos por todos nós, se referem à linguagem do “filho-da-puta”, reduzindo-o a fdp ou disfarçando-o com *** onde é uta. Já agora, um aparte: se googlarem filho da puta ficarão a saber que o dito também foi um puro-sangue que ganhou nove de doze corridas. Garanhão aristocrático, portanto.
   Eis que em pleno século XXI se revela um risco levar à cena um texto como o que Pimenta publicou nos idos de 1977, depois de se ver confrontado com um ror de peripécias burrocráticas, chamemos-lhes assim, atadas, erguidas, enroladas pelos tais que entre fazer e não fazer se empenham em não deixar fazer. O ritual a que assistimos na Sala Estúdio do Teatro da Rainha tem o condão de azucrinar as atitudes comodistas, conformadas, reverenciais e servis que tanto agradam aos poderes instalados, celebrando-os através do gume da sátira e, por que não assumi-lo, de uma alegria cínica que tanto convém ao ambiente social e político deste nosso tempo, já não detergente, como diria Ruy Belo, mas desinfectante. Não há gel, porém, que elimine das mãos dos homens o veneno pandémico da besta, devidamente representada no cenário com um bestiário seleccionado a preceito: cobras e lagartos, abutres e tubarões. Ao centro, um ser com cabeça de revólver remete para outras criaturas. Será arte, a da guerra?
   O tratamento dado ao texto de Pimenta por Fernando Mora Ramos e por Miguel Azguime tem, entre outros, dois méritos evidentes: a capacidade de encarnar os diferentes tipos de retórica persuasiva do discurso e a respectiva articulação desses tipos com jogos fonéticos que fazem desta peça uma espécie de musical para um só instrumento, a voz através da qual a palavra se exprime. Desde que entram na sala, encapuzados como monges beneditinos, evocando o filho-da-puta à laia de canto gregoriano, até ao ritual fúnebre final, os quatro actores em cena (Cibele Maçãs, Fábio Costa, Marta Taveira e Nuno Machado) desdobram-se em múltiplas personagens. Vemos o político e o vendedor de banha da cobra, o especialista de painel televisivo e o aprendiz, o mestre, o discípulo, vemos o malandro e a menina de cabaret, o pivot de telejornal, o deputado, o padre, o sacristão e as carpideiras, em sucessivas reencarnações discursivas que nos oferecem, ao mesmo tempo, a transversalidade dos grandes e dos pequenos filhos da puta.
   Apesar deste aspecto lúdico, o pior que pode acontecer a um espectáculo deste tipo é ser confundido com a mera anedota. Não o é, nem sequer podemos garantir que seja inofensivo. Há no texto de Pimenta e na adaptação que lhe foi conferida pelo Teatro da Rainha uma obstinação e uma contumácia pouco usais entre nós. O princípio é o de uma espécie de desobediência civil, entendida como direito inalienável de confrontar todas as formas de exercício do poder com a sua violência inerente. Se aqui o riso assoma aos rostos do público é para que deixe de estar latente a crueldade exercida pelo filho da puta, lembrando quanto dele pode germinar em cada um de nós. Neste sentido, há uma profilaxia no espectáculo, neste momento preciso da história, que é deveras pertinente. O medo aí está espalhado entre continentes, desbravando caminho para a paranóia de que se alimenta o autoritarismo asfixiante das liberdades individuais. Pandemia rima com burocracia, esta com idolatria, e nada disto é por acaso.

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