Acreditando que em 1977 era diferente o
mundo, ficaríamos algo decepcionados ao constatar quão mesmo, idêntico, semelhante,
repetitiva e monotonamente previsível é hoje esse dissemelhante que julgávamos
para sempre enterrado mas se perpetua como um vírus impossível de erradicar. Apetece
recuperar o célebre dito do unionista Manuel de Brito Camacho, que há coisa de
um século resumiu de modo eficaz o curso da História: «As moscas mudam mas a
merda é a mesma.» Os vícios humanos são universais, acompanham-nos como
parasitas, muito provavelmente desde que para eles inventámos a palavra vício. Mas
nem tanto se exigia, já que intrínseco ao homem é a sua bestialidade. “Superação”,
ouvimos a certa altura, como um eco vindo dos antigos mandamentos que ordenaram
controlar a animalidade exercendo sobre a natureza o domínio da razão. Os
resultados estão à vista.
Talvez tenha sido por silogística similar que
Alberto Pimenta se encerrou numa jaula do Jardim Zoológico de Lisboa
originalmente pensada para albergar símios. O happening deu que falar, acabando
o poeta marcado com o ferro da inconveniência por uma Academia mais vocacionada
para o comodismo reverencial do “sim senhor”. Não queremos cá macacos, disse o director.
E Pimenta ficou no desemprego. Passaram 43 anos sobre o feito e sobre a
primeira edição do “Discurso Sobre o Filho-da-Puta”, reflexão cartesiana acerca
de um certo tipo de ser (ou de se ser) que os dicionários excluem, preferindo a
versão eufemística filho da mãe, mas a vida concreta se encarrega de reproduzir
ad nauseam. Escusado será um périplo pela imprensa diária para que fique
provada e comprovada a tese, bastando para tal que em casa existam espelhos
onde possamos ver reflectidos os vícios que ou nos conspurcam ou nos derrotam.
Há um preço a pagar pela liberdade de
pensamento, por essa maldita ousadia de olharmos para nós próprios com aquele
espírito ameaçador da idiolatria tão cara ao poder. Este prefere erguer
estátuas, disseminando por ruas, praças e avenidas a toponímia dos seus heróis
sem que por debaixo do nome surja uma referência, por mínima que fosse, aos
crimes de que ninguém está livre de cometer. Afinal somos humanos. Nisto, os gregos antigos eram mais honestos (ia dizer justos) do que nós temos sido. Eram
deuses, precisamente, por neles haver o reconhecimento da maldade, ao passo que
nós insistimos nesta ilusão de santidade com que idealizamos paraísos na terra e
glorificamos pulhas com cara de anjo. Daí também o puritanismo com que os
órgãos oficiais, do Estado, pagos por todos nós, se referem à linguagem do “filho-da-puta”,
reduzindo-o a fdp ou disfarçando-o com *** onde é uta. Já agora, um aparte: se
googlarem filho da puta ficarão a saber que o dito também foi um puro-sangue
que ganhou nove de doze corridas. Garanhão aristocrático, portanto.
Eis que em pleno século XXI se revela um
risco levar à cena um texto como o que Pimenta publicou nos idos de 1977,
depois de se ver confrontado com um ror de peripécias burrocráticas, chamemos-lhes
assim, atadas, erguidas, enroladas pelos tais que entre fazer e não fazer se
empenham em não deixar fazer. O ritual a que assistimos na Sala Estúdio do
Teatro da Rainha tem o condão de azucrinar as atitudes comodistas, conformadas,
reverenciais e servis que tanto agradam aos poderes instalados, celebrando-os através
do gume da sátira e, por que não assumi-lo, de uma alegria cínica que tanto
convém ao ambiente social e político deste nosso tempo, já não detergente, como
diria Ruy Belo, mas desinfectante. Não há gel, porém, que elimine das mãos dos
homens o veneno pandémico da besta, devidamente representada no cenário com um bestiário
seleccionado a preceito: cobras e lagartos, abutres e tubarões. Ao centro, um
ser com cabeça de revólver remete para outras criaturas. Será arte, a da
guerra?
O tratamento dado ao texto de Pimenta por
Fernando Mora Ramos e por Miguel Azguime tem, entre outros, dois méritos
evidentes: a capacidade de encarnar os diferentes tipos de retórica persuasiva do
discurso e a respectiva articulação desses tipos com jogos fonéticos que fazem
desta peça uma espécie de musical para um só instrumento, a voz através da qual
a palavra se exprime. Desde que entram na sala, encapuzados como monges beneditinos,
evocando o filho-da-puta à laia de canto gregoriano, até ao ritual fúnebre
final, os quatro actores em cena (Cibele Maçãs, Fábio Costa, Marta Taveira e
Nuno Machado) desdobram-se em múltiplas personagens. Vemos o político e o
vendedor de banha da cobra, o especialista de painel televisivo e o aprendiz, o
mestre, o discípulo, vemos o malandro e a menina de cabaret, o pivot de
telejornal, o deputado, o padre, o sacristão e as carpideiras, em sucessivas
reencarnações discursivas que nos oferecem, ao mesmo tempo, a transversalidade dos
grandes e dos pequenos filhos da puta.
Apesar deste aspecto lúdico, o pior que pode
acontecer a um espectáculo deste tipo é ser confundido com a mera anedota. Não
o é, nem sequer podemos garantir que seja inofensivo. Há no texto de Pimenta e
na adaptação que lhe foi conferida pelo Teatro da Rainha uma obstinação e uma
contumácia pouco usais entre nós. O princípio é o de uma espécie de
desobediência civil, entendida como direito inalienável de confrontar todas as
formas de exercício do poder com a sua violência inerente. Se aqui o riso assoma
aos rostos do público é para que deixe de estar latente a crueldade exercida
pelo filho da puta, lembrando quanto dele pode germinar em cada um de nós.
Neste sentido, há uma profilaxia no espectáculo, neste momento preciso da
história, que é deveras pertinente. O medo aí está espalhado entre continentes,
desbravando caminho para a paranóia de que se alimenta o autoritarismo asfixiante
das liberdades individuais. Pandemia rima com burocracia, esta com idolatria, e
nada disto é por acaso.
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