quarta-feira, 29 de julho de 2020

UM POEMA DE ANTÓNIO OSÓRIO


O REGRESSO

Regressado da morte
procurava o calor das fogueiras,
o cheiro lêvedo do pão,
o passo dos cegos na rua,
o ninho ancorado à varanda
com o seu frágil, suspenso
voo de barro, as grandes rugas
das casas que envelhecem.

À terra mate do arroz
ia ver se as mulheres eram humilhadas.
E tocava na ponta das espigas
para saber se os homens eram humilhados.

Oh alegria
de tocar na própria carne,
no rosto que vira inquietante crescer.

Nem que fosse um instante,
seguia o rasto ido do futuro
e sonhava ser aquilo que não fui:
o Inca clandestino, a coberta das árvores
depois das últimas chuvas do Outono,
antiquário de raízes, fósseis, destruições,
o cúmplice dos que se amam, dos que confiam,
dos que lutam pelo homem, ou nuvem
que de outras nuvens se aproxima,
rio que noutros rios deita a sua água,
pai exangue ou filho de tudo quanto existe.

António Osório, in A Raiz Afectuosa, edição do autor, Abril de 1972, pp. 78-79.

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