MONÓLOGO DE UM CRENTE EM CRISE DE LUCIDEZ
Senhor, nós que tivemos
carros velozes,
comprados aos teutões do rio Meno;
nós, os nautas, que andámos
a cavalgar a luz em gigabites
nos ecrãs fabricados
pelos netos de Mao Tse-Tung;
nós, os sem estatuto,
que deixámos a Great Corporation
fingir facilitar-nos
em prestações suaves
a casa que comprámos
com o nosso trabalho de trinta anos;
nós, que nos apurámos
em civilizações contínuas
e vimos o rosto à mais pequena célula,
medindo a chegada aos astros
em milhões de anos-luz,
matematicamente certa,
hipoteticamente possível no futuro,
para nossa alegria e glória humana,
nós dizemos, Senhor,
são íngremes os teus caminhos,
pois devoraste quanto amealhámos
e fizeste-nos servos em Espártaco,
e deste a água, o vento, povos e países
à Great Corporation,
e entregaste-lhe o nosso sangue
e as ervas que apurámos contra a morte,
e preparas agora as trevas
em dias finais de sol,
responde, deveremos escutar
a pregação de Paulo
ou a palavra secreta do teu filho
que os zelotas baniram?
Nuno Dempster, in Variações da Perda, Companhia das Ilhas, Junho de 2020, pp. 39-40.
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