quinta-feira, 20 de agosto de 2020

REAGIR À REACÇÃO


Em Janeiro, 15 energúmenos fizeram uma espera a um rapaz e espancaram-no até à morte. Logo correu a versão de que tinham sido ciganos os maus da fita, enquanto aqui e acolá se debatiam possíveis motivações raciais por detrás do crime. Ainda não tínhamos chegado a Fevereiro, um deputado da nação serviu-se das redes sociais para insultar outra deputada da nação sugerindo que ela voltasse para a sua terra. Enquanto tal, no Brasil, o Presidente da República brasileira alinhava com listas negras na Rondônia e garantia que os índios eram cada vez mais humanos como nós. Portugal, que pouco ou nada tem já de indígena, alimentava a "tão ilustre e empenhada comunidade" das redes sociais ora com o Movimento Zero, ora com o Movimento Nada. Desde o Velho do Restelo que é típico deste país dizer mal de quem parte, ficando-se a ver passar navios ou a contar aviões. Fazer qualquer coisa, por mínima que seja, é para preguiçosos ou pretos. Branco que é branco ou manda fazer ou deixa andar, enquanto os cães passam em caravana e os gatos se recolhem no covil. Voltemos aos factos. Em Março, o protofascista de serviço anunciou a sua candidatura à Presidência da República garantindo que tem sonhos húmidos com castrações físicas e é aplaudido e até alguém lhe faz a tal saudação que deixa "óbvio o implícito", excepto para quem o explícito não é para ser levado a sério. Não se passa nada, 'tá-se, deixa andar. Com a Covid-19 a tomar conta de nós, a coisa até que podia ter amainado. Não amainou. Na linha da frente, como agora se diz, surgiu um deputado da nação (e não só) a sugerir que os membros de uma determinada etnia deviam ser sujeitos a confinamento especial. Veio o 25 de Abril, o 1 de Maio, o 13 de Maio, e toda a gente se distraiu de um nome: o cidadão ucraniano que morreu no SEF do aeroporto de Lisboa continua sem nome. Assim como facilmente se reduz uma manifestação contra o racismo a um cartaz infeliz, também não é difícil reduzir uma carta aberta a questões de pormenor. O engraçado disto é que com tanta redução acabamos todos na página em branco, com a cabeça entre as orelhas, os ombros encolhidos, as mãos nos bolsos, a ver um cidadão ser assassinado à luz do dia, na praça pública, por um sujeito declaradamente racista, como quem vai a uma peça de teatro e acaba a discutir a temperatura da sala. Não há paciência para tanto pormenor. "E vão ufanos com a publicaçãozita, e com a atitude de a verem likeada" os que reduzem e pormenorizam como se o crime pudesse ser reduzido ao pormenor e não bastassem as ameaças de morte e tudo quanto por aí se vai vendo para fazer um mínimo que seja de dizer: cheira a merda, não fui eu que pisei e muito menos me caguei. Pois aqueles que se estão a cagar para, perdendo tempo das suas preciosas vidas com questiúnculas de pormenor, fiquem lembrados de que há vidas roubadas que já não ressuscitam. Se uns "só animam aquilo que julgam enfrentar", outros só consentem com aquilo que fazem por ignorar. O resto é História. E não é bonita.


Em resposta ao José Teixeira, no Facebook, assinado por Henrique Manuel Bento Fialho, militante do PCP, escritor por infelicidade, dos que assinou com convicção, porque para a merda já não se vai. Ela aí está como o abismo para onde se dirigem os cegos de Pieter Bruegel, o Velho (que não do Restelo).

2 comentários:

Anónimo disse...

Para ajudar à festa, vale a pena ver que escreveu a Madalena:
https://lescahiersdelamariee.blogspot.com/2020/08/quanto-carta-aberta-dos-escritores-de.html - acho que é esta a ligação. Isabel

hmbf disse...

A Madalena? Sei quem é a Madalena. Que pena a necessidade de madalenas neste país.